(LEPIDÓPTERO NÃO TEM NADA A VER COM A NATUREZA)

Grifado quebranto... Na minha atracção de Mistério freme densamente qualquer coisa de sexual...
(...)
É que, para mim, tudo quanto me impressiona se volveu sexualizado - e em sexo apenas o oscilo, o desejo e o sofro...
Mário de Sá-Carneiro,
«Céu em Fogo»

A dificuldade de biografar o poeta não decorre da escassez nem da abundância de vicissitudes por que haja passado. A História parece mesmo factor irrelevante no seu caso, de tal modo está ausente da obra. E não se pode dizer que tenha vivido em época pobre de acontecimentos. Em tempo de guerra, instalado em Paris, pouco fala dela, e se lhe faz referências é em termos económicos ou mais ou menos triviais. Mas este é outro problema, que diz respeito a um distanciamento da realidade. O pensamento, os distúrbios emocionais, a tensão entre o normal e o anormal é que colocam o biógrafo numa posição instável, tanto o movendo ao desgosto como à piedosa condescendência. Em autores de grande vivacidade de espírito não raro encontramos repulsas que chegam a tocar o insulto ou a grosseria; noutros, mais pacientes e inclinados ao pudor, surgem rodeios indecifráveis para explicar o inexplicável. De forma que a dificuldade consiste em estabelecer posição de alguma frieza que consinta o conforto do estudo sem os constrangimentos da emoção. Escusado será dizer que o esforço para me situar estrategicamente nesta posição só me permitiu chegar às «zonas intermédias».

De uma forma ou de outra, reacções mais emotivas do que racionais acompanharam o «Orpheu» desde a origem, em especial Mário e Pessoa. E entre si, quantas vezes não reinou mais o sentimento do que a mútua compreensão dos valores? Sá-Carneiro, entre adesão e repúdio, de curiosidade fascinada, submete a obra de Santa Rita Pintor aos mais fúteis julgamentos. Fernando Pessoa, nas suas doutrinações inconsequentes, coloca a Poesia (os versos) no topo da escala hierárquica das artes - aliás ele estabelece essa hierarquia para colocar os versos no topo -, de modo que a pintura (já não falando das outras artes) desce os degraus bastantes na sua consideração para surgir uma espécie de desentendimento de grupo quanto à importância da revista. Como se cada um falasse para seu lado. Referi a circunstância de nem Pessoa nem Sá-Carneiro terem frequentado o círculo de artistas visuais que em certa altura formaram corpo com o casal Delaunay. É Almada Negreiros, menos limitado por preconceitos, que alarga o campo de acção do «Orpheu», ao declarar que o seu maior mérito consiste no encontro das letras e da pintura. Demasiado absorvidos em si mesmos, nem Mário nem Pessoa parecem dar-se conta de algo que aos olhos de Almada Negreiros se reveste da maior importância:

Os queridos companheiros do «Orpheu» não estão todos nos dois números saídos incluindo o terceiro quase todo impresso.

Há quem persista em que «Orpheu» foi início de um epocal das letras quando afinal era já a consequência do encontro das letras e da pintura. Era mesmo a primeira vez que tal acontecia em Portugal desde o nosso século XV. Entretanto as letras eram as aficionadas da pintura, e a pintura a aficionada das letras, e perdendo fronteiras, o encontro das letras e da pintura estava sempre a dar-se, e deste modo era-Ihes arrebatada a única possibilidade de encontro.

Cinco séculos depois «Orpheu» faz o segundo encontro português das letras e da pintura.

Almada Negreiros, «1915/Orpheu/1965»

Na sua capacidade polivalente de criação, Almada, artista mais completo, representa as múltiplas potencialidades do «Orpheu». E parece ser o único a ter a consciência disso.

Mas o que interessa é ver a reacção de estranhos ao trabalho destes homens, cujo génio se origina em diferentes tipos de loucura (um deles, Ângelo de Lima, internado num hospital de alienados), e não tanto as posições relativas deles. À data de saída dos dois números da revista, em 1915, o sucesso traduziu-se no escândalo dos «lepidópteros». Termo criado por Mário (1). Já agora voltamos ao livro de Almada, «1915/Orpheu/1965», para sabermos o que se passou:

Criação de Mário de Sá-Carneiro.

A mais profunda das três criações de vocábulos perjurativos usuais em dias do ORPHEU. Lepidoptero simula com o próprio vocábulo palavra erudita com todo o fingimento de individuar categoria de excepção. Mário de Sá-Carneiro foi mais longe: deu o exemplo vivo do lepidoptero. Um acerto genial. Ele-mesmo. Aí o temos agora (felizmente vivo) director dum diário da capital de Portugal, cinquenta anos depois da criação do vocábulo lepidoptero. É tão feliz esta criação que ele não deriva de nenhuma possibilidade filológica como afinal o parece. Lepidoptero não tem nada a ver com a natureza. Assim mesmo é perdurável. A ciência actual está mobilizada para debelar esta autêntica existência que nada tem que ver com a natureza. Não será que a natureza se tenha prefabricado este subproduto para que bem se veja o que acontece quando natureza não está? Por outras palavras: na queda de Ícaro, o que a provoca não é de maneira nenhuma a sua inacessibilidade à transnatureza, mas sim o poderosíssimo mimetismo dos lepidopteros.

Um crítico historiando ORPHEU diz acertadamente não ter havido noutros países similar da violência com a qual eclodiu entre nós a vanguarda da modernidade. Não viu o crítico que a violência já era resposta? Resposta à pretensa intrusão da nossa eclosão ORPHEU?

Medite-se esta violência na «apagada e vil tristeza» onde é necessário morrer primeiro para ser ouvido depois. Que o Estado seja o que arquiva, é-Ihe devido. Mas que arquive. Se faz favor.

Constantemente acontece indignar-nos actuação doutrem manifestamente hostil à nossa pessoa. Das vezes que decidimos ripostar, na grande maioria dos casos, não tinha havido conhecimento sequer do que realmente se havia passado. A memória vem esburacada e salpicada de esquecimento.

Mas quando se trate de Director de Imprensa Diária da capital dum país, quando se trate de Director de Imprensa, esta invenção a que foi dado pôr fim a fígados pessoais à mostra, a memória assim simplificada não pode deixar de ter contabilidade à qual responde depósito bancário. «Antolhos (nas enciclopédias) são peças de couro, ou outro material, nas cabeças das bestas, para que não possam ver para os lados, tão somente para a frente e para baixo». Este Director de diário da capital de Portugal, foi proposto e consagrado «Príncipe dos Poetas Portugueses» naqueles dias próximos do dia em que Mário de Sá-Carneiro se matou em Paris.

O lepidoptero matou o poeta.
Fim da história autêntica.

Ah ia-me esquecendo. Lembra-se Mário quando me perguntou do que eu tinha mais medo neste mundo? Respondi logo: da estupidez. E Mário disse: assim não vale. Você já sabia isso de cor.

Exemplo típico de lepidóptero foi por exemplo o intelectual que mereceu de Almada o «Manifesto Anti-Dantas». Digamos que eram os bota-de-elástico, a retaguarda artística ou cultural em confronto com a modernidade do «Orpheu». De facto, estes rapazes desencadearam uma onda de violência, sobretudo entre os jornalistas, que se traduziu mais por explosões emocionais de repulsa do que por uma oposição fundamentada em razões críticas. Há realmente estupidez nos antolhos de quem se apressa a classificá-los como doidos varridos, escapados de Rilhafoles, anormais e autores de pornografias. Mas sob a estupidez é curioso apreciar a veemência de um repúdio que carecede lógica, de raciocínio, apoiando-se antes naquele distúrbio emocional que provoca em nós a apreensão de algo que escapa ao quadro da experiência, aos limites da normalidade. De uma ponta à outra do País não houve jornalista que não tivesse emitido a sua opinião jornalística. Crítica, não. Seriam estes lepidópteros mais doidos ainda que os autores insultados? Uma vez que o mérito das obras podia ser difícil de analisar em cima da situação - e nem tanto, o «Orpheu», numa linha saudosista, continha muito material não-inovador -, não havia recuo histórico bastante nem abertura de espírito que apreendessem a mudança. Agora demência e pornografia são assuntos diferentes, perceptíveis a olho nu, e no «Orpheu» nada existe que levante tais acusações. Nem os poemas de Ângelo de Lima, um demente em sentido real. Pelo menos quanto a mim.

Estamos num domínio precário em que o pressentimento faz perder o pé ao sentimento e a razão não tem suporte para se afirmar. Além de um certo limite entramos no mundo da anormalidade, diante dela as reacções diversificam-se. Podemos submetê-Ia a concursos e inscrever os mais baixos, os mais altos, os de maior volume craniano, no livro dos recordes mundiais. Podemos exibi-Ia diante do público e daí tirar um rendimento monetário. Podemos escondê-la em hospitais, asilos, submetê-Ia a estudos teratológicos. Inútil decidir que a Natureza é demasiado boa para gerar monstros, quando a Ciência aí está para os detectar desde o reino vegetal ao humano. E diante de uma criança sem membros não precisamos de ciência nenhuma para reconhecer a presença da anormalidade. Lidar com estas coisas é difícil. Infinitamente mais difícil é lidar com elas quando os fenómenos são mentais. Em suma: é penoso aceitar certas realidades, e mesmo só ao falar delas uma pessoa mete os pés pelas mãos. Portanto, adiante.

A acusação de pornografia dirigida a Mário de Sá-Carneiro é curiosa. A partir daqui, os críticos insistem em afirmar que tal não existe nas obras. Porquê? É assim tão importante refutar a ligeireza das apreciações jornalísticas? Julgo que ninguém se preocupa com elas, a não ser por desejo de enunciar os factos que concedem à História aquela graça que a alivia do peso das mortalhas. Vejamos: nunca se declarou, a propósito de um Bernardim Ribeiro, de um Almeida Garrett, a inexistência de pornografia, para não dizer que um Sade se estuda hoje com a naturalidade com que se seguem as pisadas de um S. Francisco de Assis. Tal declaração não teria sentido. Quer dizer que as negações se tornam pertinentes quando há razão para negar. Ou seja, quando há motivo para dúvidas.

A grande diferença, a meu ver, entre as afirmações dos jornalistas em 1915 e as dos críticos, resulta da intenção e dos métodos analíticos. Onde o jornalista põe ponto final às questões com o insulto, o crítico descobre a ponta da meada. Portanto eu não nego a loucura. Simplesmente, loucuras há muitas, e nunca a sua presença foi argumento para desprestigiar uma obra de arte, pelo contrário.
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(1) O vocábulo, na área científica, existia pelo menos desde Lineu, para designar a classe de insectos que compreende as borboletas.