LEMBRANÇA DE TOM JOBIM

Chico Buarque, artista que, como ninguém, faz brotar a delicadeza e a sensualidade da "anima" - a alma feminina -, rebuscando o lado de dentro de sua criação, escreveu: "Larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim; quando minha música sai boa, penso que parece música de Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar". Imaginava, abandonando a arquitetura, ir residir literalmente, no interior dos traços incomparáveis de Niemayer.

Nessa visura profunda, Chico em raiz se antevê em dois artistas magníficos: Tom e Oscar Niemayer. São originais e revolucionários porque, pelejando em contrário ao patriarcalismo cristão, se envolvem em arquétipos, talvez do mundo simbolicamente suave, taciturno e misterioso da alma indígena. Quase sempre, o não-dizer é mais eloqüente que o ato discursivo, analítico, para alcançar o patamar supremo da arte. Modernos e filosóficos, Tom e Oscar se movem ritmicamente na relva primordial, em estado mítico, descolonizado. E, assim, produzem uma obra ímpar, como se a criação se voltasse, ela-mesma, ao estado principial do gênese e, tudo, ressurgisse com ares não-afetados de ritual e magia. Por isso, se Niemayer é o mestre apolíneo do traço, Tom Jobim é o discípulo edificante, reinvenção orfeica da Terra Brasilis.

Tom Jobim entona-se, em linha direta, com artistas da categoria de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Drummond, Darcy Ribeiro e João Gilberto, divagando, em dó menor, por ruas, recantos e praias fluminenses. De Niemayer, Tom comparte a sutileza da suave linha, um quase-giz transparente de tão sutil, que parece edifício mágico, aos nossos olhos condicionados pelos cânones ocidentais, anteriores às últimas décadas século 19. A sensualidade visual da Igreja da Pampulha, ornada em azuis efusivos, pelo talento de Portinari, ressoa como as ondas sonoras e reticentes de "Wave", de Tom Jobim. De Aleijadinho, Tom encampou a brasileirice mestiça dos profetas inconfidentes, suavemente dispostos com os olhos no vazio, vultos angelicais dispersos no silêncio da brisa mineira. Tom Jobim desfiou os enredos perturbadores do próprio silêncio, em notas musicais assemelhadas àqueles totens espetaculares de Congonhas. O velho e o carcomido pelo tempo ressurgem novos, impondo-se como expressões de pureza, atualidade e refinado encanto. Tudo se impõe como inédito, na perspectiva brasileira e internacional, pois, antes desse Jobim, Mallarmé e Debussy e uns poucos outros aqui, as fórmulas musicais soavam como rearticulações continuadas e, assim, saturação sujeita à previsibilidade e redundância. De Villa-Lobos recebeu a partitura, naturalmente expressa na fadiga acaipirada, de herança folclórica, etnomusical. Talvez reverenciando o talento e o saber de Mário de Andrade. Evoé, Tom, e seu deliciar antenado no coração tropical!

Tom Jobim é essencialmente o tom brasileiro, o maestro soberano de que falou Chico Buarque. Nesse caso, o Antônio Brasileiro já nem é mais Tom, é metáfora, especulação idealizante de um Brasil que teima em se encontrar, no idêntico a si. Nesse percurso, foi soprar sua música no barracão da Escola de Samba da Mangueira. E, naquele dia, o machismo patriarcal de bumbos em batuques, a sombra da violência e a máfia das drogas, como se fossem botas a exclamar ordens, ameaças e poderios, se aquietaram, sentiram-se esconjurados, reverentes. Quando Tom desceu as escadarias do morro, o Rio ficou mais janeiro, com esperança renovada de ano novo. Pena que, nesses casos, a força do mal se alastra por becos soturnos e enrodilhados, aonde, nem sempre, podem-se ouvir os cânticos de Jobim.

Não há muito, Tom foi chamado, tão novo e musical, ao mistério absoluto do silêncio. Fez um rancho lá nas nuvens - escreveu Aldir Blanc -, e deu pra papear com os anjinhos da cor de chope. Luminoso, deve ter-se aninhado na quintessência imaginária de volta ao paraíso. O ecossistema, de tão lógico e musical, acalentado pelas águas de março, uma sabiá e outro passarim, parece ter sentido algo por dentro: uma penetração tão sensual, profunda e delicada, como os acordes insinuantes desse Jobim. No confinamento vívido dos sonhos, onde talvez a existência se revele em tons de delicadeza, o Céu pulsa, mais do que sempre, rutilante e em paraíso. Fica o Brasil tentando achar-se no altiplano verdejante dos pindoramas. Em espera, talvez, com Niemayer, de um novo tom. (1927-1994).
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Romildo Sant'Anna, escritor, livre-docente, é assessor científico da Fapesp. Curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva".

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