ROMILDO
SANT'ANNA

O Silva e as Drogas

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Não foram poucas as vezes que o dever de ofício levou-me ao apartamento de José Antônio da Silva. Numa delas, se não me engano em 1984, acompanhou-me o cineasta Reinaldo Volpato. Recebeu-nos com duplo entusiasmo. O local de pinturas era literalmente a área de serviço, um cubículo de pouco mais de dois metros quadrados, úmido e pouco arejado. Além do tanque de roupas e um varal de arame, apenas um banquinho, o cavalete e um caixote onde se esparramavam pincéis, tubos de tinta, diluentes e panos de limpeza. Em tudo, um pretume enodoado. Em sua lógica romântica, o desconforto era positivo. Ponderava que “sem sofrê o artista não cria com sentimento”. Vinha com trajes puídos, encrostados de resinas. Um lenço a cobrir-lhe o nariz e a boca, não menos rijo por camadas de tintas sobrepostas, compunha-lhe a estampa pitoresca. Profetizava: “Não vou morrer intoxicado que nem o Portinari!”.

Impressionado com aquela figura em estado de criatura, o proseio anedótico de quem é certo do que faz, e, principalmente, com a beleza de tantas telas, o cineasta indagou: “Silva, cê usa droga?” Sido invadido na privacidade, negou veemente. Asseverou que nem mesmo fuma e costuma beber, de aperitivo, apenas um copo de cachaça “do engenho, porque faz bem à saúde”. Noticiou que não fica doente e “eu mesmo sou meu médico”. E nos levou a conhecer seu laboratório e farmácia particular. Sabia de cor indicações e posologias, embora visse em muitos remédios serventias não enunciadas. Este cronista pediu pra ficar com algumas bulas, ao que o artista assentiu. Garantiu que possuía estoque dos mesmos medicamentos e até os receitava aos amigos. Passou a enumerá-los. Quando estava pintando e ficava nervoso, muito emocionado de se lembrar do sertão, bebia um gole de um lenitivo preparado na noite anterior: um comprimido de Lexotan, diluído num copo dágua. Explicou que “serve pra relaxar, porque não é brincadeira o que a gente passa nervo com este ramo da arte, Deus me livre!”. Pra combater toda espécie de micróbios, “porque a cidade de São Paulo é um inferno de poluída”, ingeria, uma vez por semana, num só dia e alternadamente, uma caixa dos antibióticos Gantrisin ou Bac-Septin, repartidos em porções de três cápsulas, ao acordar, antes do almoço, da janta e ao deitar-se.

Além de outros medicamentos circunstanciais, e como complemento nutritivo, Silva tomava diariamente um comprimido de Gevral Super e outro de Endo-Geriol, este último indicado nas perturbações do período pré-senil. Com aparente disposição, seguia tal dieta há muitos anos. Indagado se não considerava insensatez o uso de tantas drogas, respondeu: “Os médico e a crítica diz que eu tenho parte com o diabo, e sou um fenômeno. E atualmente já provaram, tintim por tintim, que tou criando uma nova escola na arte. Chama-se arte da pesada!”. Passou em revista os quadros antigos que não vende por dinheiro nenhum, e os da mais recente safra, expostos com orgulho no espaço que toma, de baixo até encima, as paredes do apartamento. Parou pra admirar o auto-retrato “Viva o Silva e morra as Bienais”. E comentou soberbo: “A bienal queria a minha caveira, mas eu fiz a caveira deles. Que azar, foram mexer logo comigo!” Parou frente de um quadro em que inscrevera: “Sou artista da pesada e louco. Os urubus são meus irmãos. Só pinto o Brasil de ontem”. Noutros, liam-se: “O capeta é um grande amigo”; “minha vida é um paraísso”; “tenho medo”; “guem me engana fica enganado”; “gosto de pintar as mulheres gostão do meu dinheiro”; “viva os rabos de saias”; “guem gosta de mim sou eu mesmo”.

Solene, atropelando sonhos, José Antônio assegurou que retratava os nus femininos “com modelos ao vivo, contratas por hora, como os grandes crássicos”. Mas “os auto-retratos de mim mesmo eu pinto de cabeça, lembrando do que sou”. E, aos olhos do curioso cineasta, persistiu ufano e saudosista, a remexer os novelos do passado. E a elogiar os predicados de sua nova e doce musa Graciete. E a considerar uma droga a pintura atual que não fosse sua. Tudo, tudo, passeando pelos cômodos de si, palco improvisado da glória ungida pela loucura dos deuses. A pelejar num cavalo de madeira soltando faíscas dos cascos e das ventas, entre as cortinas dos sete mil cabedais, no apartamento da rua Tenente Azevedo, São Paulo, Brasil. Eis o Silva, alegre figura, desfolhada – quem sabe? – doutro romance de cavalaria. (1909-1996).

 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.