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ROMILDO SANT'ANNA
Silva em 55 luzes
 

O ano de 1955 foi marco divisor na carreira de José Antônio da Silva. Consolidando o reconhecimento nacional e estrangeiro, o artista é convidado de três grandes exposições: a Internacional de Lissone, em Milão, Itália, a Internacional do Carnegie Institute, de Pittsburgh, Estados Unidos, e a Internacional de Pintura no Ateneo de Valencia, em Caracas, Venezuela. E, como nas edições de anteriores, distinguiu-se na III Bienal de São Paulo.

Se, por ocasião do aparecimento de Silva para a arte brasileira, em 1946, seu traço é marcadamente rústico, em atmosfera escura e sufocada, denotando falta de horizontes e ausência do vislumbre de saída para a situação existencial de penúria em que vivia, de 1948 a 1954 a euforia toma-lhe conta do espírito. Publicara a autobiografia Romance da Minha Vida (1949), sob a chancela do Museu de Arte Moderna de São Paulo, com grandes festejos e acolhida. Na I Bienal paulistana (1951) recebera o prêmio de aquisição do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e, no ano seguinte, sala especial na Bienal de Veneza. As tonalidades cavernosas e disfóricas diluem-se em matizes claros e sorridentes. Suas cores passam a ser misturadas na paleta e distribuídas em minúsculos segmentos multicoloridos. É dessa fase a esplêndida tela Matança (1950, 70x50cm, MAC-USP). Caracteriza-se pela maior incidência de luz em todos os planos do espaço pictórico, e pelo cinetismo a propiciar movimentos dramáticos e naturalistas à cena. Por outro lado, aparecem os motivos líricos, visões românticas da paisagem natural e cultivos agrícolas, como a amplitude dos algodoais ( Algodoal , 1950, l01x51cm, Col. Theon Spanudis), alvos, verdejantes, resplandecentes, arrematados pelos tons violéceos ao fundo, entre nuvens. Estreitando-se à nostalgia transfiguradora da natureza, são dessa fase pinturas como Cachoeira do Marimbondo (1954, 76x57cm, Col. Paulo Egídio Martins), com o borbulhar das águas do Rio Grande, em incessantes movimentos rítmicos e sonoridade, e contrastando com o restante da paisagem, a calma do céu e solidão compenetrada no caniço de pescadores.

A partir de 1955, o que parece desaparecer em dramatismo, eivas de rusticidade e obscuro existencial, ganha em euforia interior que se manifesta em tomadas de posições, experimentalismos estéticos e ritmos de luminosidade. Os enquadramentos são cada vez mais aproximados, prevalecendo, no entanto, uma característica mais referencial que emotiva. Em consonância com a influência que lhe exerceram os pontilhistas europeus de fins do século XIX, as configurações cromáticas repartem-se em pinceladas minúsculas e justapostas, às vezes arredondadas ou pingadas, às vezes em pequenos riscos com pontas de pincel. Suas cores ficam geralmente puras (não-misturadas), com preferências para o nacionalismo do verde, o amarelo, o azul e o branco, com ocorrências de vermelhos e marrom. A ruptura, a partir desse período, marcará sua obra para sempre. Muito antes dos movimentos preservacionistas da natureza, os quadros desse período gradativamente passam a representar um grito em defesa de si, da ecologia e do ecossistema. Troncos de árvores sangram gementes e inscrições cunhadas nas telas denunciam a predação ao meio-ambiente. Decorrente dessa fase plástica e ideológica é Lavoura de Algodão (1972, 160x90cm) - uma das principais telas do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' de São José do Rio Preto. Em alinhamentos simétricos, o rendilhado das leiras de algodão encontram-se com o infinito, como se os caminhos do existir humano aliados à natureza lavrassem o percurso em direção ao espaço do absoluto, Deus. Lavoura de Algodão, por seu lirismo, profundidade plurissignificante e de meditação sobre o ser na vida, revela-se como obra memorável do artista. Não se exaure no inventário enumerativo de fazeres, seres e coisas. Com simplicidade e síntese estruturante, equaciona um universo simbólico em que se mesclam realidade e fantasia, razão, cultura, tradição, emoção e mistérios. Possibilita reflexões acerca de alguns questionamentos essenciais da existência tais como as relações inalienáveis entre a natureza, o humano e a intuição imperecível da idéia mística de infinitude. Mais uma vez nesse quadro, o mundo exterior das vivências passadas é absorvido pela interioridade do artista, que no-las devolve de modo sublimado, delicadamente sensível e substancialmente universal. São sementes brotadas em 55 e que, no ano que vem, completam 50 anos.

 
 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.