ROMILDO
SANT'ANNA


Criadores de Sacis

.

Não poucas vezes tenho observado certa apologia à lenda do Saci. Um tanto excêntrica e bizarra, existe até uma Associação Nacional dos Criadores de Sacis. Visto tratar-se de uma idéia, no mínimo insólita, Jô Soares convidou a seu programa membros de tal agremiação. Não eram senhores propriamente “do povo”, onde superstições e folclores são espontâneos e interativos. Os entrevistados dissertaram sobre características, tipologia e a presença dessa entidade na Serra de Botucatu. E testemunharam seus relacionamentos pessoais com tais duendes. Foram momentos anedóticos e descontraídos. Ao final, em meio às gargalhadas, o apresentador indagou mais ou menos isto: “Escuta aqui, além de ‘criar sacis', vocês fazem alguma coisa útil na vida?”.

Cada um pensa o que quer e como pode. Em nome do folclore, promove-se uma criatura impregnada do racismo que permeia a sociedade. O Saci, na mente e coração dos brancos, é descrito como um menino da cor negra, perneta e com uma das mãos furadas, impertinente e assustador. Embrenhando-se nas matas (como fizeram os escravos fugitivos), tal ente demonizado espanta o gado, deixa abertas as porteiras, assusta aos viajantes, furta roupas do varal, faz o diabo. Era, e continua sendo, no consenso imaginário, a expressão simbolizadora do preconceito ao escravo e alforriado africano e seus descendentes. Na mente assustada do “sinhô”, era o contraponto anti-heróico, o negativo de Zumbi dos Palmares e tantos insurgidos do cativeiro.

Muitos abonam a figura do Saci utilizando-se de Monteiro Lobato. Há que lembrar que o consagrado escritor marca-se por vários rompantes racistas e polêmicos. Pode-se mesmo afirmar que, em muitos aspectos, sua literatura reproduz os símbolos e dramas morais da aristocracia rural, segregadora e escravista. No “Sítio do Picapau Amarelo”, onde um Saci transita pelas rebarbas, Lobato constrói um universo que deixa claro a hierarquia que demarca o lugar da cozinha e o da sala, o lugar dos pretos e o dos brancos. Sua coletânea de contos “Negrinha” (1920), cujo título dispensa comentários, assim começa: “Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados”. Em “Urupês (1918), distila um oblíquo preconceito ao trabalhador da roça: “A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra; este funesto parasita é o caboclo, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização”. Assim, ao mesmo tempo que disseminava preconceito, sua prosa moralista sedimentou as perspectivas do “apartheid”, numa sociedade de tradição escravocrata. Por mim, prefiro a imagem reparadora do “Pererê” – um menino comum brasileiro –, no talento artístico e compostura ética de Ziraldo.

Quem defende “o Saci é nosso” parece desconhecer suas origens. Adaptado às respectivas culturas, freqüenta o imaginário de nações européias. É o Fradinho da Mão Furada, em Portugal, mão furada como o Saci, e de carapuça vermelha. Ente maléfico, habita florestas e colinas. Transplantado em países hispânicos, é o Yacy-Yaterê, no Paraguai (repare a semelhança sonora do nome em guarani com “Saci Pererê”, do tupi-guarani). Inferniza as crianças e ameaça entregá-las a seu irmão Aó-Aó, um canibal. Os “sacis europeus”, apresentando formas e comportamentos semelhantes aos do Saci, certamente foram propagados pelos invasores portugueses – mormente os jesuítas – atividades ações lúdicas, artísticas e supersticiosas dos curumins. No processo de aculturação nacional, ditado pelo fervor dominante dos conquistadores brancos, esse “bicho-papão” é um menino negro. Como identidade brasileira, agregaram-se-lhe tintas sombrias de inferioridade racial e preconceito.

Na ficção folclórica, entidades sobrenaturais são estranhas e zoomórficas; o Saci é um garoto mesmo, magrelo e negro. Imagine se seria concebível, no fetiche brasileiro, um menino da cor branca vivendo no meio dos bichos, aleijado, vicioso, desumano, assustador e demoníaco! Toda lenda tem um fundo de verdade. É necessária uma abordagem crítica do assunto, com discernimento histórico, humanitário e sociológico. Parece-me que “criar sacis” é fomentar o sentimento retrógrado do barbarismo de que não vamos esquecer: a escravidão. Melhor deixar que “pequenos demônios” venham-nos visitar em nossa pesada consciência, agonias de recordações ancestrais, e em noites de pesadelos das infâmias do passado.

 
.
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.