PIAZZOLLA, 20 ANOS

Os bons e novos ares me remetem, de repente, à maravilha da música. Música, o primeiro sorriso da cultura; música que, como escreveu minha musa, “lá dentro de nós transborda em cores; pra fora de nós, sempre o sorriso”. Porém o afã neoliberal dos últimos anos a tem como objeto rentável, medido pelo valor de mercado e, mais do que nunca, a coloca na mira do gosto fácil, das insinuações empobrecedoras, vestindo-a de modo estéril, enfatizando as aparências e minando os valores essenciais da vida. Nas brechas destes tempos, entretanto, surgem artistas que, com poderoso instinto e tino de penetração na alma de seu povo, invertem a onda da correnteza com intervenções precisas e fino sentido de resgate humanitário, antropológico. Vejo a Argentina padecer de sérias crises estruturais e, há 20 anos, da perda de um de seus mais refinados artistas: Astor Piazzolla.

A milonga e o tango dos subúrbios jamais serão sorvidos como pastiches de consumo, em shows reluzentes do tipo “Una Noche em Buenos Aires”, para o deguste festeiro dos turistas. Piazzolla, a partir de redutos fortificados de arte e cultura tradicionais, foi um dos mais profundos e sensíveis artistas da música contemporânea. Aquilo que se ia transformando apenas no torneado aparente de trançapés e coxas e ligas sensuais, instigados por acordes másculos e narcisistas, se recuperou no encanto delicado de sua música, no encadeamento suave das sensações profundas, na expressão cortante das paixões que transbordam aos quatro ventos do Cone Sul. Em Piazzolla, o sorriso é a ironia da amargura, projeção da subjetividade desta parte do continente, na visão melancólica e noturna de arrabaldes ciosos, poeirentos e sofridos. Reside em sua música o sentimento da transformação fantástica por que passou o século XX, desde os campos argentinos aos recantos longínquos do mundo. Isto é o tango do artista de Mar del Plata: um Marlon Branco patético e agonizante, na sacada turva e fria de uma tarde, no “O Último Tango em Paris” de Bertolucci; um Jorge Luís Borges a perguntar-se devaneante: “onde estarão aqueles que passaram, / deixando à epopéia, um episódio / uma fábula ao tempo e que sem ódio / lucro ou paixão de amor se esfaquearam?” Um pouco dessa sensação angustiante é o bandoneón arrebatador de Piazzolla, com suas harmonias cortantes a entrelaçar enredos de sensíveis cellos, baixos, pianos, violas e violinos.

O artista Piazzolla conseguiu extrair do mais profundo retrato regionalista a essência do humano, em suas características universais: o amor, a paixão, o sentimento trágico da vida, a ligação com a terra, a sensação nostálgica de que algo se perdeu, mesmo que se não o tenha perdido. Sua música, profundamente enraizada em sua aldeia, não seria apenas representação, mas “manifestação”, manifestação enlevada de um estado de alma, a exprimir a gesta passional de um povo, a América Latina. O arfar de seu bandoneón, sob a luz baça dos palcos, corresponde ao bater asas de uma paloma de Picasso, o ungir sonoro e afável que transborda nas cores, palavras, movimentos e gestos de Martí, Pessoa, Violeta Parra, Oscar Niemayer, Guimarães Rosa, Enrique Santos Discépolo, Saramago, Ettore Scola, Clarice Lispector, García Lorca, Villa-Lobos, Pirandello, Mercedes Sosa..., enfim o talento latino herdando ao novo século a marca de nossa história existencial, a balada de um louco século XX. Astor Piazzolla morreu há 20 anos, cumprindo a determinação de nossa finitude. Sua melodia, no entanto, permanece inexaurível, pulsante e infinita, num ritmo temporal que enfeixa o ser humano à sua mais abstrata criação: a música. Ressoará mais do que nós, numa sensação de descoberta, conquista e perda, como o próprio passar dos anos, na efemeridade da vida.

Lembrando-me do esplêndido artista, cito umas palavras, na melancolia de Borges: “O tango, essa diabrura, / os atarefados anos desafia, / feito de pó e tempo o homem dura / menos que a leve melodia / que só é tempo...” E, feliz da vida, volto aos bons e novos ares que me contagiam. Como dizem uns versos do cubano Silvio Rodríguez, sublimando por instantes a música e sua nação, “soy feliz, soy un hombre feliz / y quiero que me perdonen, / por este día, los muertos, de mi felicidad”. Tudo transbordando em cores e maravilhas. (1921-1992).
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Romildo Sant’Anna, livre-docente, recebeu o prêmio “Casa de las Américas” – Havana.
É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’

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