E AGORA, LUIZ?

Agora, Luiz, a lua apagou... A festa acabou, o povo sumiu... foi dormir. E terá que acordá-lo todos os dias, dessa incomensurável ressaca, os que ficamos com você. Se não o conhecesse, ordeiro e cumpridor, chegaria a pensar que você mudou; eu não mudei. A fome, a brutal injustiça e o desejo de mudança não mudaram. Têm o mesmo nome e endereço. É muita a frustração encalacrada, no oceano das angústias e desencantos. São mais de 50 milhões de desacorçoados, em estado subumano, definhando na miserenta miséria. Em nada adianta a doce palavra, a fina estampa de seus trajes, na meia lua glamourosa dos reclames da televisão. Ainda pulsam no seu coração a lua cheia de São Jorge, e a alma ardente do guerreiro? Aquela febre instigante de lutar contra o dragão da maldade permanece-lhe viva na alma? E agora, companheiro?

Jamais peça que esqueçamos das coisas que você falou. Não é decente. Fomos devastados em nosso patrimônio; a soberania nacional foi negociada, ao preço vil de um beijo na face; as melhorias que vieram, dando-nos a feição pop da modernidade, custam-nos o olho da cara. Fica-nos, Luiz, o bem essencial: nossa predestinação antropológica da esperança e da peleja. Será você o poder que governará para a imagem abstrata do capital anticristo, ou o presidente que emana do cristão brasileiro, o irmão-gente brasileiro, finalmente? Será você a meiguice com que se tem apresentado nos jantares do high-life, ou será o que há de endurecer, turrão e franco, sem jamais perder a ternura? E agora, Luiz? Você há que lutar contra sete mil conspiradores, sanguessugas insaciáveis dos institutos bancários e bolsas de valores. Vai enfrentar o menosprezo dos poderosos, a segregação aos exclusos, a discriminação de classe, a exploração do pequeno pelo gigante, e que fizeram desse Brasil, o Brasil.

Quantas noites, irmão grande da casa pequena, você se lavou das imoralidades, para continuar na decência de caráter que é seu. Segue consigo, à alvorada, o sedutor rastro das trevas, em que a fraude é o mais obsceno dos silêncios? Essa mão mutilada continuará emblema dos que ficamos cá embaixo, nos campos, construções, balcões do comércio, radiopatrulhas e delegacias, nas salas-de-aulas, ambulatórios e escritórios, no vai e vem dos viajantes, bancas de camelôs, e na indigência inerte dos desempregados e molambentos em geral? E agora, camarada?

Você, estirpe da voz rouca, brotou como a rosa socialista, na agitação da terra em transe. Outro humilde, anunciado noutra estrela, e vivo em sacramentos, propôs a igualdade pela fraternidade. O pacto com a casa-grande é a nova utopia, a levar esperanças à senzala dos excluídos? E agora, Luiz? O artista mostrou, na grande cidade, o “povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”, mirando, na procissão despossuída, os braços servis do trabalho, no país de tradição escravocrata; e, ainda, falava da “força da grana de ergue e destrói coisas belas”, fitando os tentáculos das cifras, na febre lasciva de dinheiros. Cê sabe, o capital, e seus duques refinados ou chulos, têm a força de enriquecer nos meandros de si, pelo convênio yuppie da esperteza; o obreiro se faz com as mãos, as unhas lanhadas de terra, e uma fé latente e descabida! Você, agora, oferece outra alternativa: um mecânico irmana-se ao capital. E agora, companheiro, em que esquina nos encontramos, para rir do passado, cujo presente nem chegou?

Não há lei, nem pajelança, que combatam, sozinhos, os corruptos fundamentais e, com eles, a perversão à vida. E agora, Luiz? Pelos campos há fome, em grandes plantações, dizia o poeta. Não se vá esquecer dos que ficamos pelos eitos dos sertões, pelas grotas dos subúrbios, e dos que, nos descaminhos da história, morreram com a roupa lanhada em fogo. Os meninos e meninas que comiam luz, nas fotos salgadas do artista, são o filho mais velho e o mais novo, das vidas secas, no abril despedaçado. Continuam penitentes, a perambular pelo Brasil. Não, não vá desdenhar da etnia ultrajada, inteligente, cordial e arteira, que entrelaça o sangue de lusitanos exilados, escravos pretos e índios, baldios e de déu em déu, na gesta do país em construção. Não, Luiz, você não se vai esquecer da nação e seu povo. Somos de outra forja, torneados pelo sonho e pela fé. 2002 é um eixo da História. Antes, a alternância do poder se dava entre os prediletos dos prediletos senhoriais. Agora, é você. E se consolida a Democracia no Brasil. Navegar é preciso. Luiz, para onde?

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Romildo Sant’Anna, escritor, assessor científico da Fapesp,é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’.

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