LIBERDADE É AZUL


Você amanheceu sem assunto? Então volte o rosto pra cima, e se deixe molhar pela mais profunda e suave das cores. Com a atenção flutuante, cuide-se pra não ir dar no não-lugar perigoso das nuvens donzelas, alienadas e perdidas, em seus vazios franjados de branco. E desfrute do “tudo azul” sobrenatural e melhor dos mundos. Tampouco se deixe tomar pela ilusão azulzinha das mantas dos bebês sedutores (que são sedutores e angélicos todos os bebês), ou pelo teor tonificado do vestido azul na moça do jornal, incrivelmente físico e real, tão real que desdiz o próprio tingido de azul, a cor das maravilhas. Pense suavemente nas iluminuras dos mosteiros, no manto azul da Virgem, em telas de Rubens e Murillo, num flechado Cristóvão de Portinari, ou na dubiedade incorpórea das criaturas e paisagens de Picasso, tão extenso, mediterrâneo, tão andaluz... tão azul.

Na trilogia primeira das luzes, o ouro é sonegação fecundada na inveja; o encarnado são bocas abertas de obsessão, e fazem continências e alegações excitantes, bárbaras, tensas. Só o azul, desprovido da ardileza mundana, só o metafísico azul é pigmento de leveza e liberdade. Se verde é repouso terreno, o viço mais espesso, nas veredas e verdores instáveis da vida, é na planura límpida e refrescante dos azuis que os deuses passeiam todos juntos, e sorriem de nós, capitães de areia, argonautas e astronautas, a alevantar a taça cheia de nada, no infiel de cada dia. Apontam, esses deuses, cá embaixo, o alarido das sutilezas descabidas, o fervor anti-heróico das horas malcontadas, a lavra adamantina e multiface de nossos espelhos. Apontam, divinamente celestes, com a extremidade incorpórea dos dedos, nossa interminável querência de deslizar nas bordas inefáveis do arco-íris.

Israel Pedrosa, no livro “Da cor à cor inexistente”, escreve que a lenda do pássaro azul, símbolo da felicidade inatingível, nasceu da analogia secreta do azul com o inacessível. Diante do azul – formula o autor –, a lógica do pensamento consciente cede lugar à fantasia e aos sonhos, que emergem dos abismos mais profundos de nosso mundo interior. Por sua indiferença, impotência e passividade aguda que fere, o azul atinge o portal do inconsciente.

Deus anunciou: “Que haja luz!”, fazendo-nos a mágica do princípio. E, separando o negrume do caos, e criando-se o dia, abriu o cortinado azul dos oceanos e do firmamento. Fez também um cenário de aventuras, pra que dominássemos os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e todas as feras, e todos os répteis que rastejam sobre o chão, em todas as cores, mescladas de azul. Atinando em Deus, mais que no realismo físico das cores, Da Vinci formulou: “o azul é composto de luz e trevas, de um preto perfeito e de um branco muito puro como o ar”. E disse Goethe: “o preto que clareia torna-se azul”, percebendo, na criação, a maravilhosa passagem da treva à luz. E, no desespero pela libertação das trevas, fizemo-nos Ulisses, e singramos a imensidão azul dos sete mares, e dos sete mil Danúbios azuis, na ânsia de apalparmos a matéria invisível dos sonhos. Fizemo-nos barqueiros de Colombo, na “azzurra” esquadra para o mundo novo. Fizemo-nos Quixotes, pelas andanças em busca de devaneios, campeando nas quimeras da pureza. No deslizar da história, e tentando vencer a gravidade do chão, fizemo-nos, enfim, ritualísticos e desde sempre Ícaros. Contemplamos a terra como um sonho todo em azul, nas aventuras de Buck Rogers; fizemo-nos Flash Gordon a cruzar o espaço sideral, e a mostrar-nos o tom sobre tom do grande azulejo terreno, antecipando a comprovação grave e comovida de Iuri Gagárin, a contemplar o planeta: –A Terra é azul!, ...solta, liberta, girando e girando silente, em seus matizes de índigo-blue, na tela calma do infinito.

No grande tear da existência, ao tecer as fibras mais ordinárias do estar e conviver no mundo, fazemos do azul a cor do Nirvana; dependuramos em nós a pedra-amuleto de água-marinha, na crença propiciatória das viagens tranqüilas; pintamos a casa nos tons de azul, se a queremos morada da felicidade. E, se buscamos na fonte o batismo da inspiração, tingimo-nos de azul, e escrevemos uma crônica toda em azul. E azul será, imaginária e livre, a crônica de um amanhecer acinzentado, no espaço branco e preto do jornal.

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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, recebeu o Prêmio ‘Casa de las Américas” – Havana. É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ – São José do Rio Preto –SP - Brasil

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