ROMILDO
SANT'ANNA

 

Justiça e igualdade

Dinorath do Valle, em “O Jeito” (Idade da Cobra Lascada, 1982), conta-nos uma fábula terrível. Um pai desempregado, levado à delegacia, justifica por que enterrara morto o filho recém-nascido, no fundo do quintal. Vizinhos avisaram a polícia. “Eu pensei, não ia ter jeito. Se conseguisse o registro, ia ter que arrumar o óbito. Se tivesse o papel, tinha que ver o caixão. Não tenho nenhum tostão em casa, estamos passando falta...”, justificou. O delegado comunicou-lhe que o corpo do menino fora levado ao Instituto Médico Legal para exames. “Não adianta, doutor – lamenta o pai –, ele morreu”. Enfurecida, a autoridade chama-o de “traste”. O pai nem suspeitava sobre o que lhe ia acontecer. Desatinado, seco por dentro, inda pensou: “será que aqui a gente pode pedir água?”. Isto é resumo de um conto, obra de ficção, invento de uma artista comovida que soube, com maestria, penetrar nas vilas que escondem as aflições de seu povo. Conecta-se com o real?

Será que existe um valo a separar-nos, de tal sorte que os ricos sejam mais sensíveis ao sofrimento e os pobres não? Esta lógica enfeixa uma idéia: os aquinhoados estiveram desde sempre protegidos; os miseráveis são diuturnamente submissos à imolação, ao desapreço, a ponto terem impregnado na alma a resignação de que uma desgraça a mais ou a menos não faz diferença.

Deu na “Folha”, semana passada, que Iolanda de Tal, viúva, analfabeta, ex-bóia-fria, seria ex-tudo não fossem os filhos que lhe restam (três morreram, um deles por desnutrição). Em estágio terminal de doença rúim, pereceu quatro meses em “prisão provisória” na Penitenciária do Tatuapé. Ao repórter que a visitou, enquanto segurava a bolsa de colostomia, exibiu a mão crespada de calos, testemunhas dos tempos na roça. Nesta segunda-feira, levada a julgamento, foi condenada a prisão em regime fechado, já que – sentenciou o juiz –, cometera crime hediondo: tráfico de drogas.

Iolanda, com 79 anos, catadora de papéis, contumaz traficante! Não pôde partilhar da advocacia dos aquinhoados: recebe 300 reais de pensão. Se lhe fora possível, invocaria artimanhas jurídicas, recorreria a superiores instâncias, insistiria que o pacote de dezessete gramas achado no quintal, prova material de seu crime, fora mesmo despejado por estranho. Em última apelação, confessaria que o narcótico era de seu uso pessoal, para o embalo do fim de semana ou um tapinha inocente, que arrefece as neuroses da vida.

Num box da reportagem, o jornal expõe casos recentes “exceções” de nossa justiça. Os irmãos Cravinhos confessaram ter planejado e matado, por motivos torpes e meios cruéis, o casal Marísia e Manfred von Richthofen. Foram ajudados pela própria filha Suzane – Deus me livre!”, namorada de um deles. Talvez por serem jovens bem apessoados, brancos e de classe média, o Tribunal de Justiça concluiu que “não havia razões para mantê-los na prisão”.

Argumentando ser favorável à soltura de Maluf e seu filho, acusados, entre outros crimes, de desviarem milhões de dinheiros fraudados de obras públicas, o ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, escreveu: “Imagino o sofrimento de um pai preso na mesma cela que o filho. Isto me sensibiliza”. Que cinismo!, exclamaria Iolanda, aquela avó de lástima, quarenta quilos, remoída em dores, se reunisse meios para gritar indignação. Que cinismo, eu mesmo replico, que penso e me constrangem semelhantes histórias.

Em prisão provisória, todos os apelos de consciência foram negados a Iolanda de Tal. No seu caso, os ordenadores públicos abstiveram-se da compaixão, do indulto por clemência, da consideração aos reveses da fortuna e de um primado essencial do direito: se ainda não foi julgada, presume-se, é inocente.

Em sentença, o magistrado confirmou-a no cárcere brandindo o rigor das palavras e o mandamento frio das codificações: “enquanto a lei estiver em vigor – declarou – vou aplicá-la”. Talvez desconheça, ou lhe fora indiferente, que o emprego da lei é ato de reflexão e vontade, e depende de um entorno que envolve circunstâncias. “Não é melhor a fama do juiz rigoroso que a do compassivo” – ensinava D. Quixote há quatrocentos anos. E exatamente para isto é que existem os juízes, que não são máquinas ou carimbos, mas gente. “As leis existem para as pessoas, não elas para as leis”, assevera um ministro do Supremo. Neste ponto, acende-se outra questão inda mais dilacerante: a condição miserável de Iolanda a credencia como... pessoa?

“Pobre é como podre!”, assinalam Caetano Veloso e Gilberto Gil, num hap em que a sonoridade das sílabas conclama a que meditemos sobre a conceituação de “justiça e igualdade” em nosso país.

Tenho horror em falar de semelhantes assuntos que avizinham invenção e realidade, e de chamá-lo, leitor, a compartilhar dessas desventuras. Logo agora, prestes ao Natal, e que deveríamos brindar a paz de Cristo. E, nestes dias, desapegarmos da brutal constatação: na cega justiça, ou mormente nela, “quem pode mais, chora menos”. Pai Nosso, livrai-nos deste mal. E que assim não seja.

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.