CRÔNICAS DO ROMILDO

HORA FANTÁSTICA
ROMILDO SANT'ANNA


O mundo é cheio de realidades. Realidade é apenas uma parte do mundo cruel. Mundo cruel e injusto do qual me despeço, não sem antes expor as minhas razões subjetivas. Sou do Século 20, e daí? Tenho fibra no meu eu. Primeiro, depois que ela tirou o ginasial, e eu olhando as crianças de noite, disse que queria trabalhar pra fora “pra realização pessoal”. Palavras dela; dei risada. Disse que esposa minha não precisava se matar na rua e era só fazer o serviço da casa, que eu agüentava o batente, como bem ou mal sempre agüentei. Nada tu ouviste. Teimou, até que fui obrigado a proibir. Mas nem assim resolveu e fui dialogar com a mãe dela. A velha nem deu bola.

Depois, num belo dia, peguei Odete refestelada na cama, com um livro dessa escritora boca-suja da cidade de nome que não vou declinar por uma questão de pudor. Sei que aquilo não é leitura que presta, pois até o Dr. Mário criticou lá na construção, dizendo que até em escola a tal “escritora” usa nome feio. É gente desta laia que põe tudo a perder. No nosso oitavo aniversário de casamento (ela nem se lembrou da data, diga-se de passagem) dei pra ela o livro “Éramos Seis” da Srª. Leandro Dupré. É, como todos sabem, cheio de mensagens e realidades da vida vivida mesmo. Ela simplesmente falou que já tinha passado na novela e que aquilo era “melodrama” e eu que lesse se quisesse. Aí, sem perder a calma, expliquei que não tinha tempo de ler, expondo que voltava cansado da hora-extra. Pois nunca deixei faltar nada em casa. Como de fato nunca deixei mesmo, graças a Deus. Ao que ela respondeu: Dálton, mesmo não faltando nada e você sendo ordeiro e cumpridor, ainda falta... Não entendi mas deixei pra lá, pois acho que aquela foi a última vez que ela me tratou pela minha graça (nas costas só me chamava de “ele”, por influência da mãe).

Mas como se fosse pouco, ela tacou na minha cara que eu estava sofrendo dos nervos e precisava ir no médico. Eu expliquei que não era nervo de doença, mas nervo de nervoso e ela fez que não ouviu e até riu de mim. E mais, numa bela noite, acusou que eu era tarado. Como reagi, como é natural nestes casos, ela me chamou de maldito. Maldito e tarado, mostrando as marcas de chupada no braço e nos dois lados do pescoço, dizendo que fui eu que fiz e que ela tinha até vergonha de sair na rua .

Mais pra frente, bem entendido, dias após, ela chegou em casa dizendo que tava cansada do caixa e que ia sair da firma pra estudar pra modelo. E que um colega dela, escrivão de polícia que eu não conheço, disse que ela era linda e tinha corpo pra esse ramo de “profissão”. E que ele tinha uma Kodak e queria bater umas fotos dela. Eu, que não sou bobo nem nada, percebi tudo na hora. Perdi a cabeça e novamente avancei nela. E mais, no outro dia, deixei ela trancada na casa pra aprender. Quando cheguei do serviço ela chorou mais ainda, e disse que ia dar parte do meu nome na delegacia da mulher. Aí foi que eu perdi a calma de novo.

Passo os dias soluçando com meu pinho. Quando conheci a Odete, pensei que ela só tinha mãos para me afagar. Mas não, tudo foi mudando, com a força do destino ou do tipo de criação que ela teve. Hoje, vejo que a mãe dela é interesseira e nunca fez uma unha de esforço pra explicar pra filha que ela estava errada. Acho que até gostava de ver a minha caveira. A gota d’água foi ela mostrando pra mãe as fotos que tirou, escondida. As duas riam e olhavam pra mim disfarçando. Me aproximei e ela disse que eu era intrometido. E as duas caíram na risada de novo. Odete estava nas fotos simplesmente toda nua. Arrastei ela pra dentro e disse pros dois anjinhos que a mamãe tinha ficado louca e ia levar uma lição. Peguei uma ferramenta e dei nela, e saiu sangue demais, e dei de novo até o fundo, levado por uma forte tensão emocional.

Agora ela está no chão, deitada, em silêncio, tão bonita, toda em calma, como sempre a amei. Ai, tua imagem permanece imaculada dentro de mim. A velha ficou lá fora, no berreiro. E eu no sétimo vidrinho de remédio de rato. Odete, meu amor, mesmo acontecendo o que aconteceu, sempre te adorei. Agora dorme com Deus. Na hora fantástica vou dormir, abraçadinho com você. Para sempre teu amor, Dálton.

 
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