ENTREGADOR DE FOLHETOS

Palavras que servem para rotular as coisas quase sempre são vazias. Tal acontece com os conceitos de “moderno”, “pós-moderno”. Considera-se “moderna” a era das fabricações. Em “Tempos Modernos”, Chaplin quase vira máquina no trabalho intermitente de apertar porcas e parafusos, na linha de produção. Em Rio Preto ainda existe a velha Swift, barriguda e carcomida, que hoje só fabrica a lembrança de suas glórias. O totem dos tempos modernos é a chaminé da fábrica; o templo do pós-moderno é o Shopping Center. Se o ontem fabricou, o hoje há que vender.

Antigamente, em avenidas, jovens simpáticos nos regalavam com sugestivos folhetos de propaganda, e até amostras grátis de produtos. Havia naquilo um ar primaveril, certa elegância e cortesia. Hoje, batalhões de entregadores entucham folhetos nas esquinas, coloridos, quadrados, monocromáticos, pequenos, brilhantes, grandes, horrorosos, passáveis, foscos, retangulares, rotineiros e inexpressivos... E lá vem o sujeito mal-encarado e ameaçador: “Ai de ti, se recusares o meu folheto!” Logo se apresenta a moça da casa de massagens, encantada, efusiva. Dá o folheto insinuando mimo e volúpia, como ofertando a si mesma. Alguém enfia uns papéis pelo vão da janela do passageiro; entra um braço e despeja uma lista que cai atrás do banco; outro entrega uma folha dizendo que Deus me ama e é fiel; vem um e ataca o vidro entreaberto de trás; outro empurra cinco folhetos dobrados, parecendo bulas. Alguém comenta que sua cota é alta em folhetos e ele exclama graças ao bom pai, pois nem acertou as contas do aluguel.

Há anos recebo o cartão de visita da loja de persianas. É parar na esquina, e lá vem a loja de persianas. Se tivesse guardado cada cartão, teria uma montanha estranha de 380 figurinhas repetidas, da mesma e persistente loja de persianas. Mas o motorista segue em frente. Perdido em papéis, nas mãos, no colo, no ombro, nos óculos, vai desfazendo-se deles como pode, pois o aguarda lá na frente o próximo pelotão de entregadores de folhetos e – quem sabe? – mais um cartão de visita da loja de persianas.

Na esgrima desses reclames apressados parece haver estranha competição de folheteiros. Quem entrega mais? Vem um alegre, que diz até bom dia; e outro que entrega a dor em cada folheto. Dia desses a garota feia e mirradinha protestou: – Da outra moça o senhor aceitou a propaganda, né? Verde de vergonha, pego em flagrante, catei o papel e acelerei o que pude.

Não sei se lojistas têm consciência do mal-estar que provocam; nem faço idéia se é amadorismo de marqueteiros, no afã de vender o próprio peixe. O motorista mal-e-mal segue, segue, incomodado e tenso. Relevados os exageros descritivos de meu texto, licenciados talvez pela imagem poética, é preciso avaliar que o entregador de folhetos, nem sempre ordeiro, mas cumpridor, e caçando o pão nosso de cada dia como pode, é uma das metáforas que assinalam o lado torpe e obscuro do que rotulam pomposamente como a pós-modernidade, em Rio Preto, e no Brasil de hoje.