ÚLTIMA SESSÃO DO CINEMA

a Vítor Hugo Zenezi Longo

Cinemas abrem e fecham sem nenhuma relação afetiva com a cidade. Ninguém se importa. Temos as butiques de cinema, pasteurizadas e homogeneizadas, com vidrilhos de fachos lilases e vermelhos refletidos no porcelanato, e, quase sempre, rolam filmes esteticamente conservadores, renderizados no computador. O que vale é o frenético em frenesi da ação tresloucada; personagens sem ilusão pipocam na tela, em histeria de explosões e bolas de fogo. A exceção é dádiva! O altar dos antigos astros e estrelas de cinema, no templo noir da delicadeza, afeto e romantismo, transformou-se na retumbância sonora, e na horda estridente de criaturas vociferando o vazio da alma, do charme, do estro, do amor e da vida. A permanência desses simulacros de gente dura enquanto duram as duas horas da fita. E, os que vamos ao cinema, sentimo-nos criaturas de George Orwell, no suposto de que a vida é feita à imagem e semelhança de filmes vagabundos nas quitandas do Shopping, comprados pela bagatela de uns reais à hora, em efeitos especiais e adrenalina. Após, retornamos à casa monitorados pelas câmeras das avenidas, pelos guardadores da rua, os bandidos da esquina, no entrechoque dos buracos na rua escura, e o assombro da fera a nos vigiar, no outro lado do espelho de nossa guarita interior. Acabou-se o que era doce. Extinguiu-se o romantismo pela extinção pós-moderna do cinema.

Não há muito, o cinema era uma parte doce da vida, o farnel de sonhos e crenças, no incessante anelo da ilusão. A ameaça de fechá-lo era a tragédia de perdê-lo. Os casais se conheciam no interior mágico de um Cine Splendor. E iniciavam namoro, que durava no sempre cotidiano da saúde e da tristeza, da alegria e da doença, em espera do quimérico final feliz. E nos tornamos os descendentes rituais do cinema, nas conjecturas de olhares e flertes de nossos pais, e no metabolismo deliciante dos filmes que sinalizavam o eterno estado de infância. Minha avó, que apreciava contar os filmes costurando a vida, levou-me à matinê de “À Noite Sonhamos”. E nunca mais parei de sonhar. Foram assim meus idos de cinema, como nascer e conhecer o mundo: “todos esses anos que passam por aqui / se parecem todos com filmes que já vi”...

Com febre de cinema, o amigo Mané Fotógrafo comprou um projetor de 16mm e montou seu Cine Aurora. Belo nome pra nascer o cinema em Ipiguá. Tomou de emprestado um salão 4 x 15 na praça da igreja e, aos sábados, exibia bangue-bangues, edificantes dramas neo-realistas e comédias de Mazzaropi. Às 7 da noite travava-se o pugilato do padre chamando pra reza, e o megafone do Aurora anunciando o filme a seus fiéis. Após a missa, o cinema era a comunhão profana em que os assistentes compartilhavam o amendoim torrado e a laranja descascada que Mané oferecia barato, antes dos filmes recatados e divertidos. Houve poucos incidentes, nos cinco meses de funcionamento. Certa vez, o Aurora anunciou “Jeca, o Macumbeiro”, novinho em folha, entendido como provocação e guerra ao clero local. Na missa da quarta, o cura pregou contra as obras de magia negra, macumba e feitiçaria e, no sábado à tarde, exigiu que lhe passasse o filme, pra exorcizar o mal. Até riu e gostou, e, em sinal de amizade, deu a bênção na cabeça do Mané, e agendava um tempinho pro Aurora. Na noite chuvosa do “Chofer de Praça” acabou a força no meio da sessão. Mas o povaréu se acalmou com a promessa de reprise, no domingo à tarde, com ingresso dado. Certa noite, um velhinho adormeceu no “Caminho da Esperança”, e caiu pra trás em tombo brusco. É que os bancos do Aurora, de madeira em farpa, não tinham encosto.

Tudo ia às estrelas e auroras. O único senão era o espectador no escuro, bêbado e reincidente, dando esbarrões e pisoteando cascas de amendoim pelo chão. Aliás, minto, houve sim um incidente fatal, e foi a causa da última sessão do cinema. Mané anunciou em alto estilo que passaria “Love Story”, no sábado de agosto. Pagou nota preta pelo aluguel da cópia. Nem pensou em lucro, mas no alto teor cultural do evento. Ipiguá se estreitava ao circuito do Oscar e de Hollywood. Lástima! O povo detestou os beijos sucessivos e despudorados, na casa, na neve, na praça, na escola... Era insulto, a sombra do pecado. Não se comoveu com a música dolente, nem com a doença brava da mocinha, nem com a tragédia do galã, filhinho de papai. A cada carícia, era uma salva de vaias e bagaços de laranja. Alguém lhe lançou a botina, deixando Mané sem norte. Com a crista-de-galo que o perturbava, injuriado, mortificado pelo desaforo, juntou os cacos do Aurora no fordeco pé-de-bode, e pegou estrada. Um filme ficou pela metade, no verão de 75. E Ipiguá nunca mais teve seu Cinema Paradiso.


Romildo Sant’Anna, premiado no “Casa de las Américas” - Havana, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antonio da Silva’ – São José do Rio Preto – SP - Brasil

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