A CHARRETE DO BUCHEIRO

Defronte da casa parava a charrete do bucheiro. Parece que o tempo não passava, só a charrete do bucheiro. Vendia fígados, línguas, corações, buchos, rabadas e rins bovinos. No sol das três-e-meia, era a figura soturna do bucheiro chamando a freguesia, com sua corneta e uma buzina da morte, a evocar o bagageiro de zinco, enlameado de sangue. A gente ia-lhe ao encontro se alembrando de que o “bucheiro” não era um “charreteiro” qualquer. Na condução sinistra, vendia o fígado e os miúdos baratos da nossa infância. Foi nesse tempo que, se bem me lembro, a professora ensinava o valor dos sufixos – aqueles rabichos de significados que dão origem a novas palavras. Na chamada oral, pediu-me a terminação com “-eiro”. Respondi com asco: –Bucheiro!

Viemos a saber que o sufixo “-eiro” propicia o significado de ação, intensidade, certo lugar, ou inclinação pr’alguma coisa. “Justiceiro” era Jerônimo, o Herói do Sertão, que se aventurava contra os malfeitores na radionovela da Nacional. “Nevoeiro” lembrava manhãzinha à beira de corgos – dizíamos também “cerração” –, e o “pesqueiro” onde a gente fisgava lambaris e piavas. “Cancioneiro” era lugar de canções seresteiras e poesias. No “galinheiro” ficavam as criações do “terreiro”. Mas fermentava a imaginação de criança: “galinheiro” era o homem que vendia frangos de porta em porta. E não acasalava chamá-lo “frangueiro”, pra não confundir com o “goleiro” do outro time. Vim saber, principalmente, que o tal sufixo dá sentido às profissões e ofícios. E aí era bem fácil. Tínhamos nosso pai que era “pedreiro”, o “sapateiro” da eterna meia-sola, o “sorveteiro” do apito alegre e o “boiadeiro” que tocava o Hino Nacional no berrante. Era principal no comando da boiada. Os bois ficavam tão mansos e sossegados que lhe deram destaque especial: “berranteiro”. O tempo veio aos mugidos e solavancos, e os militares nos obrigavam lembrar que éramos bem “brasileiros”.

Ficamos os brasileiros, no sempre do Brasil. Brasileiro era também o apelido com que os portugueses designavam os compatriotas que voltavam ricos à mãe-pátria, cheios do ouro. Mas os que por aqui nascíamos, e sem ouro nem eira, aprendemos a profissão de garantir abastança aos outros. Trabalhávamos então com madeiras boas e rijas, e entre elas a cobiçada de todos: o pau-brasil. Tornamo-nos brasileiros de profissão, isto é, derrubávamos árvores de brasil. Atulhavam-se embarcações; os talhos de lenhos de nosso ofício se transformaram em umbrais neoclássicos, ornamentos de oratórios, leitos nupciais, escadarias rococós e sustentações entalhadas em palacetes europeus, tribunais e bibliotecas.

Conservamos da língua portuguesa os radicais e sufixos, mas – dizem – já falamos no idioma brasileiro. “Madeireiro” é o que arranca madeira; “brasileiro” é o que tomba o lenho abrasado de pau-brasil. Vivendo em selva colonial, como ainda pensam, e designados pela profissão original, às vezes nos tratam como sambistas desocupados e preguiçosos, a beber pinga e a correr atrás de bola. Ficamos marcados pela sina de arrancar o lenho para o castelo dos outros, decepar os sertões sem justa lei que nos honrasse. Na carpintaria de agora, com a derrama da dívida externa que acham direito nos cobrar, tornamo-nos mais brasileiros, batuqueiros e chutadores de bola.

No pouco tempo dessa vida, nosso pai, cumpridor e ordeiro, entregou os pontos no prumo de pedreiro, na lástima de aposentado brasileiro. A professora de português, com seus radicais e sufixos, teve o salário cortado e morreu do coração. Deram tiro no leiteiro do poeta, e não adiantava chorar o leite derramado. O país mudou de atoleiro, na oficina insensata de sempre. Em tardes de três-e-meia, ainda bafeja o odor mortiço da charrete do bucheiro, e a corneta de apito piongo. Nessas horas, em mágico consolo, reavivam-se imagens de Jerônimo, o Herói do Sertão. Mas são figurinhas enroladas em papéis de caramelos.