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ROMILDO SANT'ANNA
Discussão de Acarajés
 

Se fosse reportagem valeria o boxe “para entender-se o caso”. E explicaria: repercutiu na imprensa que há conjeturas pra mencionar o acarajé no rol dos patrimônios nacionais. Há tempos, tal iguaria afro-baiana tivera o comércio vetado nas ruas de Salvador. Sobreviveu por insistência do clamor soteropolitano e agora – quem diria? –, obtém status de proeminência histórica. A voz fluminense de Carlos Heitor Cony reagiu. Por que não promover o tombamento da Empada-que-matou-o-guarda? Expôs razões que ultrapassam fardões da Academia. Além de não ter infringido a proibição oficial ou sobrevivido na clandestinidade, fora louvada e abonada em saborosas crônicas dele próprio e de Nélson Rodrigues. Nada mais justo, suponho. Porém, em ambos os casos, se acendem rivalidades bairristas que defendem dotes de riquezas regionais.

Confesso que nunca experimentei da Empada-que-matou-o-guarda. Mas tive única experiência com acarajé. À saída da Fundação Casa de Jorge Amado vi uma porção exposta em pano de farinha, pronta para o óleo de dendê. Explicaram-me que era feito com massa de feijão-fradinho, molho de cebola e camarão das sete barbas. Fora-me servido por autêntica baiana da ala das baianas, ou mãe-de-santo, que seja! Viera fumegante, generoso em tamanho, recostado num pedaço de papel. À primeira mordida, o triscar de areia nos dentes, não sei se das praias, carregada ao vento pelo riso das palmeiras ou – o mais provável – carcomida de alguma velha parede, pois todo o Pelourinho eram obras. Desceu incongruente e, em delírios, me vi nas estrelas. O ardume da pimenta esfolou-me a traquéia e o bolo bateu em soco nas entranhas, espalhando-se em contrações. Algo me avisava que alguém estaria brevemente com o Senhor. Mas, não. Agarrei-me à fitinha do Bonfim, o pulso reanimara. Recompus-me e desci a ladeira em passos apertados. Só agora vejo que o sobrenatural estivera perto mim, quiçá pela conjunção química dos ingredientes, ou seus efeitos parapsicológicos, dignos de tombamento em patrimônio culinário nacional.

Mas. Por que não tombam, de semelhante efeito digestivo, as Salsichas ao Vinagre curtidas em potes de vidro nos botecos de Norte a Sul? E a Feijoada Completa, indexada altaneira num samba de Chico, e nos versos de Vinícius? E o Peru de Natal, felicidade gustativa de Mário de Andrade? E a Dobrada à Moda do Porto, filosofada por Pessoa? Só não fazem o tombamento lusitano, equiparando-a a centenários castelos e monumentos, porque portugueses não são portugueses! E por que não tombam a Buchada de Bode, guisado apetecido por ministros, duques e presidentes em campanha? Ou, fazendo verdadeira ponte de integração nacional, a Esfirra negociada no terminal rodoviário do Tietê, tão grande em anatomia, que fora comparada a desejado órgão de antiga Miss Brasil, admirado em folha dupla da Playboy?

Ademais, se pretendem o tombamento de quitutes, por que não fazem também aos licores? Nada tombou mais que a nativa cachaça, cujo buquê é comparado por degustadores a refinados vinhos e conhaques. Ah, bondosa pinga, na voz grave de Inezita! Ah, quem dera se inda houvesse, eu mesmo sugeriria o Café Completo servido no vagão-restaurante da Fepasa! Que esplêndida combinação do café requentado que matou o guarda, o leite em transição à coalhada, e torradas e bolachas de maizena amolecidas, tudo em recipientes de ferro para evitar os tombamentos. Nosso cardápio é variado e rico, e o cidadão comum é chamado a exercer o seu direito. Sugestões poderiam ser mandadas à redação do jornal, pra que daqui nascesse um plebiscito nacional. Plebiscito do paladar democrático, isento de politiquices, confrarias e acarajés. Pois emanam do povo os poderes da república. E, nunca é demais sublinhar: patrimônio histórico é coisa séria.

 
 
 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.