ROMILDO SANT'ANNA
Silenciosos jogos da barbárie

Dão nojo o silêncio geral, a conivência de países e organizações honoráveis, e a venalidade dos arautos planetários das informações. Será porque a China é uma potência econômica e denunciá-la poderia agitar as bases do capitalismo? Ante o altar dos dinheiros vale tudo, mesmo o “pensamento único” de renegar o pensamento e a crítica que, por si só, implicam retrocesso à barbárie.

Salvo exceções, as notícias que se lêem e se vêem são calmas, alheias, como que a aludir a fatos longínquos. Tudo numa Praça da Paz Celestial, como pesarosa fábula em fictícias dinastias. A realidade não conta, ou fingimos não vê-la por submissão e consentimento.

Daqui por diante, só elogios ao brilho tecnológico, e, sobretudo, ao caráter civilizatório dos Jogos Olímpicos de Pequim. Enunciando a “prosperidade cultural chinesa” simbolizada pelo número 8, iniciam em 8 de 8 de 2008; terminam em 24, o triplo de 8. A cerimônia de abertura será às 8 e 8 minutos, com escarcéu inimaginável. Assim, assistiremos a tudo em horário propício à publicidade imperial chinesa e de modo a apregoar ao mundo dos negócios a consistência do mercado e confiança nas bolsas de valores.

Porém, à margem da celebração pacifista e fraterna dos esportes, há outra numerologia. Na China, a Anistia Internacional registrou, em 2001, 4.015 condenações à morte e 2.448 execuções. Foram em média 6 eliminações humanas por dia. Isto persiste. Lá, pessoas são imoladas por 68 tipos de delitos, entre adultério, fuga aos impostos e cheques sem fundo.  Confissões são arrancadas à força, famílias de sentenciados pagam pelas balas usadas nas execuções e seus corpos são violados com a retirada de órgãos para abastecimento do mercado dos transplantes.

Nos julgamentos (inclusive coletivos) pessoas marcadas com um xis vão direto ao cadafalso para a execração pública. Há pouco tempo, o jornalista Amauri Segalla narrou um quadro horripilante: “Antes de morrerem, os detentos, de mãos atadas e coleira ao pescoço, desfilam pelas ruas na caçamba de caminhões. Como gado, padecem em silêncio a exposição da desgraça. A chegada ao estádio onde serão eliminados é triunfal... E um tiro disparado na nuca do infeliz culmina o espetáculo”.

A China, com seus tentáculos e piratarias, é moderna ou zênite do horror? Trabalhadores são confinados e o Estado os controla a ferro e fogo como às esteiras de fábricas, coisificados. É assim que consumimos produtos a preços inacreditáveis.  E isto é o que nos interessa, sem que nos sensibilizemos com brutalidade do como e a infâmia dos porquês. Empresas transnacionais se estabelecem lá, à sombra do dragão, e famosas grifes exibem com descortino o “Made in China” como emblema universal da eficiência e do lucro.

Ao sanguinolento despotismo, o silêncio da cumplicidade. Dia desses, monges chineses protestaram contra a ignomínia. Em resposta, quase 100 mortos, embora a furiosa polícia reconheça “apenas” 16. O que nos concerne? Que cifras aceitamos? Ou, enfim, nos conformamos com a lógica que reduz o humano a tabelas contábeis? Tristes jogos de Pequim! Se restam deuses no Olimpo, eles choram.

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.