TESTAMENTO

Deixo aqui um testemunho breve de minha vida. Mas gostaria primeiro de dar uma descrição sucinta de mim mesmo.

Tenho cerca de um metro e noventa. Do tronco avantajado e circular saem meus pequenos dedos, um pouco moles e carentes de ossos e articulação. Não tenho isso que as pessoas chamam de braços, nem algo semelhante. Minha perna esquerda é de um metal bastante leve e brilhante, e vai se afunilando até compor um chicote, que com suas voltas dá o apoio, ainda que instável, ao corpo. Minha caixa craniana tem cerca de um metro de diâmetro, envolvido por uma camada grossa e gelatinosa de pele como a câmera de uma bola o é pelo couro. O mais singular dessa minha parte central é o seguinte: não tenho cabelo, supercílios, olhos, nariz, ouvidos nem boca. Há apenas um pequeno buraco na região frontal que se reveza em todas essas atividades; é por meio dele que contemplo o mundo e sorvo sua essência, que apreendo o ritmo da natureza e encho os pulmões com o ar da tarde. Creio que haja uma desarmonia proporcional e, portanto, bela, entre a minha cabeça e o restante do corpo que, devido a seu peso, anda inclinado sob uma surpreendente curvatura das costas que descrevem um monte. Mesmo sendo largo e elástico, não chego a duvidar da reciprocidade desses dois hemisférios que me compõem, a cabeça que gravita e o restante que dá seus passos sem desgrudar os pés do chão.

Desde muito cedo me acostumei a ser procurado pelo olhar enigmático das pessoas na rua e aceitei tacitamente os círculos de pedestres que sempre se formavam ao meu redor, o ar interrogativo de alguém que pedisse contas à Natureza; é claro que ela não dá a ninguém a esmola de sua lógica ou o motivo de seus desdobramentos e caprichos. É por isso que os homens a louvam: porque só lhes agrada aquilo que intercede em suas vidas da maneira que bem quer, sem dar a possibilidade de inverter seus papéis ou a esperança de uma explicação. Creio que os homens sejam, na verdade, os animais mais domésticos e domesticáveis que haja no mundo. Amam o zelo, pois ainda que ele seja cruel, maligno ou opressor, é ele que os desincumbe da liberdade.

Entre o riso escancarado e cheio de saliva do público do circo e a chuva de pedras, copos e restos de comida que me alvejava, entre o aplauso frenético de uma platéia no auditório da televisão, talvez os únicos seres mais adestrados que os animais que conheci nos picadeiros infinitos pelos quais passei, e o disco rubro do sol que me despertava com suas setas líquidas quando dormia à beira de uma estrada ou de um precipício, entre os garotos que ejaculavam sobre o meu corpo ou que esparziam fezes e urina sobre mim durante o sono, pouca coisa ocorreu no meu percurso pela Terra, e pouca coisa poderia contar. Dou apenas o atestado da minha existência; se isso não bastar, é sinal que tudo o que sempre farejei por trás do riso abominável das pessoas que cruzaram meu caminho está comprovado. Mas não tenho rancor, e digo-o com a frieza de alguém que se abrisse como um mapa diante dos olhos alheios. Sei no íntimo de mim mesmo que eu sobreviverei a elas, a seus filhos e a seus netos. E tudo persistirá indefinidamente até a completa extinção dos tempos sob o pó de um esquecimento irreversível e a aniquilação dos seres no interior do âmbar. Estarei sempre presente, próximo, tangível no frescor do travesseiro, sondando dia e noite os pensamentos mais recônditos que elas possam ter e na origem de todos os seus gestos mais espontâneos, ainda que não me notem. O nó se atará e se reatará sob novas formas dentro do infinito até a nossa pulverização em uma ampola. Estarei no encalço de todos os dias e de todas as horas dos homens enquanto eles não me compreenderem.

De você, meu herdeiro, espero apenas que saiba que não sou um enigma. Simplesmente ninguém nunca perguntou o meu nome.