Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX Número 03|Janeiro de 2010

  NÚMERO 03

JANEIRO 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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LISBON  BLUES,


DE JOSÉ LUIZ TAVARES – A PROPÓSITO

 Nuno Rebocho

Com Cesário e Camões, Bocage, O’Neill ou Cabral de Melo Neto dissolvidos na saliva, deglutidos, assimilados nas partículas do citoplasma, José Luiz Tavares faz-se às ruas de Lisboa que, todavia, são apenas algumas outras artérias da enormíssima megapolis do País Real deste autor que emergiu de uma aparente ruralidade original para, nas travessas da Diáspora, também ele se irmanar nos obras de construção onde patrícios vendem a força de trabalho. Aí, os tijolos de José Luiz Tavares são palavras, as paredes erguidas são versos, os patamares são estrofes, os edifícios são poemas.

Chama-se Poesia o País Real de José Luiz Tavares. Por isso é que o poeta de Txon Bon, transportando-se a outras paragens, nunca se expatriou. Sempre permaneceu no seu espaço pátrio. Será esta a razão da transnacionalidade - uma oceânica transnacionalidade sobre cuja superfície circulam vocábulos de diferentes proveniências e que são a substância, a matéria da sua oficina.

Muito se tem falado do vocabulário, da linguagem de Tavares. Eu, que não sou exegeta, prefiro falar da sua ressonância. Explico-me.

Para o poeta-construtor, entendo eu, as palavras são o seu próprio mistério e ousar penetrar nele é como querer entrar no centro do furacão, correndo o risco de naufragar ou ser arrastado pelos turbilhões. Reparai que as palavras, quando fixadas no texto, cristalizam e tornam-se imorredoiras: porque se estão nos textos, sobrevivem com eles e, por isso, tornam-se nossas conviventes: existem, desde que nós existamos onde as palavras estão, são coniventes com a cultura de cada qual – são parte dessa “agreste matéria mundo” que faz a identidade da Pátria Poesia. O sabor medievo ou renascentista de alguns vocábulos usados por Tavares, tal como as formas/fórmulas adotadas, é mera incidência, tal como a sua crioulidade ou portugalidade ou qualquer alieniginidade (recusando eu observar aqui o fundo português do crioulo).

Acrescem a estas, outras incidências. A saber: o poeta-construtor pode, se o quiser, dar aos vocábulos significados divergentes daqueles que os dicionaristas codificam – não são os dicionaristas que condicionam os poetas; são os poetas que desafiam os dicionaristas, até porque aos poetas pertence subverter a ordem. A Poesia é a Liberdade, é a Revolução, é a Subversão.

E, não menos importante: sentindo disso necessidade, o poeta inventa, cria de raiz com a matéria-prima que lhe aprouver. Tomemos um exemplo francês: o bourassassa de Trintan Tzara é tão consistente como a palavra solitude. Ao fim e ao cabo, a regra é esta: d’abord la musique.

Quero com isto dizer que importa menos, na Poesia, validar fonemas e sintagmas pelo rigor dos significados, do que tomá-los pelo sentimento/ressentimento dos significantes. E estes transmitem-se mais pelas cadências, pelos ritmos, pela sonoridade e pela ambiência. Atente-se num belo exemplo – pag 98, poema 12 (sobre uma fotografia de Bernard Plossu):

“Seguem, dolentes e negros, à sombra// das viageiras nuvens. Tristes e três// sob o ferrete de um irresoluto combate.// O pacificado céu guarda-lhes os rostos// Negros, como negros são os cisnes// que a insónia pastoreia.”

Notem o que aqui vai de aliterações, de ressonâncias, de vibrações, de ritmos internos a cada verso. Na descrição de uma foto, mais do que a leitura daquilo que os olhos vêem, fica (pela ambiência criada pelo poeta) a leitura do que a alma sente e pressente. E notem como isto muito pouco ou nada se submete às camisas de força dos dicionários, às suas regras de trânsito. Por isto, tanto se diz que é terrivelmente difícil traduzir poesia de um idioma para outro.

Para entender bem Lisbon Blues, de José Luiz Tavares, convirá ler e reler este livro: em voz baixa, cada leitor de si para si, e em voz alta, ouvindo-se. Saborear os sons, descortinar o que eles despertam na pele e na mente, pressentir os sentimentos nele encerrados e prontos a estoirar, a soltarem-se, porque incontíveis se acharmos, por esta via, a ponta da agulha capaz de rebentar o balão. Essa é a nossa complementaridade: o poeta-construtor esmerou-se, à laia do que quis, em torturar o seu universo ao rigor do verso e encafuou-se nele. Mas deixou, no exterior da forma, os albacadrabas para abrir os desafiantes sésamos.

É evidente que ajuda conhecer os itinerários de José Luiz Tavares. Não será determinante, mas é prestimoso bordão para a caminhada do leitor. Disso se encarrega, e bem, José Luís Hopffer Almada num texto integrado em Lisbon Blues. Sob o título “José Luiz Tavares: um percurso fecundo e luminoso na novíssima poesia cabo-verdiana”, Hopffer leva-nos à errância do autor que hoje aqui nos cabe também apresentar. Felizmente que Hopffer o faz num posfácio. Libertou (assim) o leitor para uma primeira leitura, não encarreirada, não condicionada – se se quiser: não manipulada - , para que ele pudesse esbracejar sozinho nas suas próprias interrogações e perplexidades. No fim, atirou-lhe a bóia para a eventualidade de algum perigo de afundamento ou afogamento. Louvo o método, até porque, chamando a posteriori a atenção do leitor para alguns aspectos do texto, apela também à releitura e à redescoberta.

Confesso devorador de paisagens, desde “Paraíso Apagado por um Trovão” (a sua anterior poesia não a conheço), José Luiz Tavares devassa o seu actual habitat – Lisboa. Contrariamente a outro cantor da cidade das sete colinas, Miguel Barbosa, Tavares escapa aos ritmos e às cores do fado. Opta pelo compasso sincopado e por vezes a-sincrónico (diacrónico) do blue, como que a dizer-nos que nele há tanto de afro-europeu como de afro-americano, que esta “Lisboa que eu amo” é tanto afro como New Orleans ou Saint Louis. É afro verdadeiramente. Tão realmente quanto moura, safardita, galega ou saloia. O alfacinha é, queira-o ou não, crioulo… à sua maneira.

Eis como Lisboa se faz outra “matéria agreste”: de braço dado com Cesário e regido também por outros manes, o poeta de Txon Bon calcorreia a Estrela, o Alto de Santa Catarina, as ruelas de Alfama, espreita Campo de Ourique, embrenha-se no Intendente e no Cais do Sodré, respira fundo no Castelo, repousa no jardim do Tourel, madruga no Chiado, desembarca no Rossio, percorre o Bairro Alto, sobe o elevador de Santa Justa, embebeda-se das ondas sagradas do Tejo (que já foi de B.leza) e das memórias que ainda discorrem no aqueduto das Águas Livres dos crimes de João Diogo.

É a Lisboa dele. É, diga-se, também a minha Lisboa.

Nisto, o poeta funciona como amiba: tudo envolve, tudo cerca, absorve, integra - o sol e o céu, os tapumes, a chuva, a luz, o fumo, as janelas de Maluda, os semáforos, as tintas, as cores, as neblinas, o frio e o calor. E até os cus – isso mesmo, os cus. Tavares vagamunda por Lisboa que hoje apenas é os restos mortais, as cinzas, do império ainda testemunhados pelos negros que a habitam, afinal tão lisboetas como os brancos, os pardos, os chineses ou os indianos. Uma Lisboa talvez bela, mas também sofrida e sofredora, por onde deslizam copos de cerveja e de vinho tinto… e os carros eléctricos de José Gomes Ferreira.

Tavares raspa a caliça das paredes fantasmáticas. E descobrindo a vetustez e a modernidade, o poeta descobre-se, redescobre-se, questiona-se sobre si próprio e sobre o ofício de poetar. Trata-se de poesia e de meta-poesia. No nocturno das vielas tantas vezes, Tavares não teme o sarro da língua e as camas de ocasião. Sem tabus.

“Mar e margem amparam o fragor// que leva o desalinho às vísceras.// Na máquina do poema// é lenta a combustão que devolve// o tejo ao afago que tantas metáforas// sussurrou aos zelosos funcionários das musas. //// Não há, porém, métrica que cinja// a voz de um rio quando suspira nas entranhas// avivando um passado que é cisco na memória”

- lê-se na pag 59 (O rio enquanto anti-lira).

Também ele, José Luiz Tavares, é (palavras suas, bocagianas) “funcionário das musas”. À beira-Tejo hoje plantado se exerce. Também eu, hoje do Tejo apartado, me confesso aqui funcionário das musas. Como José Luís Hopffer, que posfacia este livro. Todos, em comum ou separadamente, saberemos a fatualidade um dia poetada pelo português Fernando Grade: “não há tusa// para tanta musa”. É verdade, sim senhores. Mas não há desistências.

Assumo: adoro este Lisbon Blues.

 Nuno Rebocho (Portugal, 1945).
Escritor e jornalista. Foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece em Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999. Texto lido na apresentação do livro na Cidade da Praia, 8 Agosto 2009/Tarrafal de Santiago. Contacto:
ferreirarebocho@hotmail.com.

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