Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX NÚMERO 02

 

NÚMERO 02

NOVEMBRO 2009

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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EMANUEL DIMAS PIMENTA

MONDO

LITERATURA E DEMOCRACIA,

MUTAÇÕES COGNITIVAS E VALORES HUMANOS

 

MONDO - Literatura e Democracia: a metamorfose do futuro.
Mutações Cognitivas e Valores Humanos
Emanuel Dimas de Melo Pimenta 
Georgetwon University, Washington DC, United States 
Título: MONDO - LITERATURA E DEMOCRACIA
Autor: Emanuel Dimas de Melo Pimenta
Ano: 2007
 Filosofia, estética, cognição
Editor: ASA Art and Technology UK Limited
© Emanuel Dimas de Melo Pimenta
© ASA Art and Technology . www.asa-art.com . www.emanuelpimenta.net

Todos os direitos reservados. Nenhum texto, fragmento de texto, imagem ou parte desta publicação poderá ser utilizada com objectivos comerciais ou em relação a qualquer uso comercial, mesmo indirectamente, por qualqueis meios, electrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, qualquer tipo de impressão, gravação ou outra forma de armazenamento de informação, sem autorização prévia por escrito do editor. No caso do uso ser permitido, o nome do autor deverá ser sempre incluído.

MONDO - Literatura e Democracia, Mutações Cognitivas e Valores Humanos

Para René Berger

A finalidade da lei é, não abolir ou restringir, mas preservar e ampliar a liberdade.
John Locke 

Grandes homens, grandes nações, não foram fanfarrões nem bufões, mas entendedores do terror da vida, e se prepararam para enfrentar isso.
Ralph Waldo Emerson

 

Um dos traços humanos mais curiosos é a formidável capacidade de fazer generalizações. 

Generalizamos automaticamente. 

Esta é uma generalização. 

Tratar arquitectura, música ou literatura como questão de gosto, por exemplo, é uma popular generalização. 

Muitos só se dão conta do absurdo dessa afirmação quando o objecto passa a ser medicina, cujos resultados implicam uma directa responsabilização em relação à vida; ou matemática, cujo universo é muitas vezes pleno de signos inacessíveis ao comum dos mortais. 

Naqueles casos, torna-se claro que não se trata de gosto, mas de conhecimento, de referências dentro de um sistema de ordem. Entretanto, de uma ou de outra forma, tudo o que fazemos não é uma questão puramente subjectiva, absolutamente livre do ambiente que nos forma.

A própria subjectividade, aquilo que sou, também é aquilo que somos, pois o que denominamos inteligência está entre nós. 

Pois a palavra humano surge da antiga expressão humus, significando terra, e que também gerou o termo humildade – sentido que liga-nos a todos.  

Todavia, esse sentido de unidade transformou-se ao longo de milhares de anos. 

Quando fazemos parte de uma sociedade oral, o seu ambiente e a natureza das nossas memórias de curto e longo prazo projectam pequenos grupos sociais ligados entre si, num certo sentido como a forma de uma cebola – com camadas que vão se superpondo, sempre dependendo da posição em que estivermos. 

Por isso, é comum encontrar nas sociedades típicamente acústicas e orais grupos que tendem a se fechar em círculos cada vez menores. 

Eu e os meus filhos contra os meus irmãos. Eu, meus filhos e meus irmãos contra os meus vizinhos; eu, meus filhos, meus irmãos e meus vizinhos contra os outros... Daí o velho ditado Árabe – «para os amigos tudo, para os outros a lei». 

Bem antes de Maquiavel, o próprio Petrarca aconselhava o príncipe ideal: «Deves ser o pai dos teus súbditos; os deves amar como se fossem os teus próprios filhos, amá-los como se fossem os membros do teu corpo. Contra os inimigos, empregarás armas, guardas e soldados...». 

Petrarca, que viveu entre 1304 e 1374 – embora maravilhoso escritor e poeta, e precursor de muito do que viria a ser o mundo Moderno – ainda tinha nas suas veias a escala acústica do universo medieval. 

O princípio da isonomia é uma ideia de uniformização. 

Um pouco por todo o planeta, no início do século XXI, questiona-se a validade da democracia. Quem seria igual a quem? Um miserável drogado teria o mesmo valor para a sociedade que um cientista? Um terrorista teria os mesmos direitos que um cidadão cumpridor dos seus deveres? 

O princípio da isonomia acaba com essa questão – não há mais lugar para julgamentos de valor. Todos são iguais face à Lei. 

Trata-se de um princípio ideal, naturalmente. 

Não existe uma igualdade absoluta, como também não existe diferença absoluta. 

São pólos de atracção, espécies de atractores estranhos. 

O princípio da isonomia surge na Antiga Grécia, mais precisamente em Atenas.  

Cícero dizia, sobre a isonomia, que «o que se segue desse princípio é que se há uma quantidade específica de criaturas mortais, o tamanho das imortais não será menor; e, ainda, se os elementos destrutivos do mundo são incontáveis, as forças de conservação também devem ser infinitas», assim, todos são iguais face a um princípio superior. Tudo se tratando de uma questão de escala. 

A ideia de isonomia parece começar a tomar forma como conceito convencional somente a partir do século V a.C., com Alcmaeon of Crotona, que viveu entre 540 e 500 a.C onde actualmente fica a Calábria, na Itália. 

Alcmaeon era um médico e defendia que «a igualdade – ou isonomia – dos poderes – tais como o húmido, o seco, o frio, o quente, o amargo, o doce e assim por diante – mantém a saúde, enquanto que a monarquia entre eles produz a doença». 

Ele foi o primeiro, na Grécia, a defender que o cérebro é o local onde se processa o pensamento e, curiosamente, diversos autores têm sugerido que essa ideia apenas lhe terá aparecido após ter observado o nervo óptico ligando os olhos ao cérebro – o facto curioso está na íntima relação entre a ideia de isonomia e a faculdade da visão. 

Nascido pouco mais de vinte anos após a morte de Alcmaeon, Heródoto defendia que «o governo feito pelo povo traz consigo a mais bela de todas as ideias: isonomia – a igualdade de todos face a lei». 

Contemporâneo de Heródoto, Péricles, citado por Tucídides, dizia que «a nossa constituição se chama democracia porque o poder está nas mãos não de uma minoria, mas de todo o povo. Quando se trata de determinar disputas privadas, todos são iguais face à lei...». 

Cerca de cem anos antes, as reformas sociais projectadas à partir das célebres Leis das Doze Tábuas elaboradas por Sólon – que viveu entre 638 e 558 a.C. – são por muitos consideradas como a primeira expressão concreta do princípio da isonomia: todos uniformemente submetidos a um único e estável conjunto de leis – mais de cem anos antes de Alcmeon. 

Assim nasceu o que vulgarmente chamamos de Estado de Direito. 

Por que essa ideia da igualdade de todos face à Lei surgiu nessa época? 

A isonomia é um dos elementos fundamentais para a compreensão da democracia. Outros são a departamentalização e a atomização das suas partes constituintes. 

Átomos, departamentos e um universo de igualdade face à Lei. 

São os departamentos, as partes estabelecidas em independentes unidades discretas e um princípio de igualdade face à Lei que determinam a ordem ideal da democracia. 

Outro elemento importante é ser a Lei, ou corpus legal, um sistema estável e elaborado pelo povo, de forma directa ou representativa. 

Isonomia e democracia chegaram a ser considerados quase opostos por Platão. Aristóteles defendia na sua Política que «é mais apropriado que a lei governe do que qualquer um dos cidadãos», e condena o governo onde «as pessoas governam e não a lei», quando «tudo é determinado pelo voto da maioria e não pela lei». 

Isto é, pode haver isonomia sem democracia, mas aquela é fundamental para a existência desta, pelo menos em termos modernos. 

Na isonomia não há questões pessoais. 

O primeiro artigo da Nona Tábua de Sólon, sobre lei pública, diz que «nenhum privilégio, ou estatutos, serão estabelecidos em favor de pessoas privadas, para a injúria de outras, contrariamente à lei comum de todos os cidadãos, a qual os indivíduos, não importando de que categoria, têm direito de fazer uso». 

A partir do século II d.C., a igualdade de todos face à Lei gradualmente perde preponderância, com os governos aumentando as suas interferências sobre as vidas dos cidadãos, principalmente tendo como justificação a melhoria da segurança e da performance económica. 

Já no século VI d.C., o Imperador Justiniano terminaria definitivamente com a ideia de que todos deveriam ser iguais face à Lei e que esta deveria servir à defesa da liberdade dos indivíduos - lançando um primeiro modelo para a figura do príncipe, que se consolidaria muito mais tarde. 

O antigo princípio Grego da isonomia apenas viria a ser efectivamente resgatado já no século XVII, através das ondas de transformação produzidas pelo Renascimento Italiano. 

Por que apenas então é que a isonomia voltou a ser um elemento importante na discussão das estruturas políticas de ordem? 

As respostas a essas questões implicam saber como a forma que usamos os nossos sentidos altera e formata os nossos padrões de pensamento, como a lógica é desenhada. 

Lógica não como um específico tipo de raciocínio, tal como defendido por Aristóteles, mas enquanto princípio de ordem do pensamento, tal como defendia George Boole. 

Ordem nada mais é que diferenciação, e desordem desdiferenciação - fundamentalmente os dois princípios basilares da termodinâmica: os elementos de agregação e de desagregação.

Toda a lógica nada mais é que o desenho das forças de agregação e de desagregação. 

A emergência da ideia de isonomia e, logo depois, da democracia, coincide com a invenção do milagre Grego através da importação do alfabeto fonético do Crescente Fértil, a sua síntese e aquecimento com a adição das vogais. 

Associado ao papiro, a escala de uso desse artefacto cognitivo gerou uma mutação nos padrões de pensamento, nas estruturas de ordem, nos princípios de diferenciação. 

Toda a generalização está inevitavelmente relacionada aos princípios de ordem - aos princípios de diferenciação - mas sempre aspirando à entropia. 

A questão não é se generalizamos ou não, mas como o fazemos - quais os princípios que orientam a organização do nosso pensamento. 

O exercício intensificado do uso do alfabeto fonético associado a um meio rápido como o papiro, ou ainda mais rápido como o papel, articula dois tipos de visão: a periférica e a central. 

A visão central é sensível à cor e à textura, a visão periférica ao movimento e à luz. 

Tudo acontece com a escala da escrita - o tamanho das letras sobre papiro ou papel. Se as letras forem muito grandes, por exemplo, a legibilidade diminui pois, dependendo do tamanho, passam a implicar um envolvimento maior da visão periférica. A percepção da forma das letras é especialmente orientada pela visão central. 

Lemos letra a letra e por blocos, sílabas, palavras e frases - num dinâmico processo de rastreamento envolvendo diferentes partes do cérebro e ambos os tipos fundamentais de visão. 

Quando lemos um texto, conforme a visão central vai identificando as letras, a visão periférica dá-nos a percepção do todo, do sentido do texto. Tudo muito dinamicamente, em contínuos saltos de um lado para o outro, para cima e para baixo. 

Uma pessoa que acabou de ser alfabetizada tem dificuldade em compreender um texto, pois ainda não articula de forma rápida e dinâmica aquele processo de saltos oculares no contexto da escrita. Aprendemos a vasculhar, e quando o fazemos bem, lemos em silêncio - nos libertando da voz e do ouvido. 

Isso não significa que os antigos Atenienses liam normalmente em silêncio.

A primeira referência à leitura silenciosa - que desassocia definitivamente o ouvido da fala - apenas acontece mais de cem anos depois de Sólon. Até mesmo durante o Império Romano, a existência de celas especiais nos edifícios e nas casas pertencentes às classes sociais mais ricas indica que, muito provavelmente, grande parte das pessoas ainda tinha o hábito de ler em voz alta. 

A presença do papiro não era suficientemente grande para permitir o hábito generalizado da leitura silenciosa. 

A leitura em silêncio cresce gradualmente com a popularização do papiro, e desaparece, de forma relativamente rápida, com a sua parcial substituição pelo pergaminho no final do Império Romano. 

O pergaminho é um meio mais lento e mais raro que o papiro. 

A fusão do alfabeto fonético e o papiro, assim como a leitura em silêncio, faz emergir aquilo que no Ocidente designamos literatura. 

A forma da literatura é a do seu meio. Unidades discretas intercaladas numa estrutura fortemente predicativa, teleológica. 

Seguindo a clássica divisão triádica do mundo Indo Europeu, geralmente pensamos em estruturas hierárquicas como sendo típicas do exército, do mundo agrário e das estruturas religiosas, isto é: típicas de estruturas pré-literárias.

De facto, assim acontece, pois se trata de um novo meio que toma como seu conteúdo o meio anterior. Qualquer sistema democrático isonómico existente é caracterizado por fortes princípios de hierarquia.

Tudo sendo regido pela Lei. 

Há dois tipos de natureza hierárquica - a teleologia e a teleonomia. A primeira é a orientação do sistema para um ponto de atracção, espécie de singularidade, que pertence ao próprio sistema. A predicação é um exemplo de como tal acontece. O termo teleologia foi criado pelo filósofo Alemão Christian Wolff, que viveu entre 1679 e 1754. O mundo literário é fortemente teleológico. 

Teleonomia, por outro lado, indica uma estrutura hierárquica gerada sem intenção - fenómeno típico na biologia. Teleonomia significa a emergência de uma estrutura de ordem hierárquica gerada pela função, isto é: por um processo de coordenação que desenha-se orientado pela função através de um processo de dissipação. 

Enquanto que a teleologia estabelece a posteriori os princípios de ordem, a teleonomia os têm a priori, como a sua natureza primeira. 

Na democracia republicana de carácter isonómico - seja do tipo presidencialista ou parlamentar - tudo está orientado para um foco de poder, com uma estrutura ordenada pela Lei, sempre uniformemente acima de todos - e tudo é estabelecido em termos teleológicos. 

Em toda democracia isonómica sempre há aquilo a que chamamos de autoridade - nas suas mais diversas instâncias. A palavra autoridade nasce de autor, que é fortemente relacionada com a escrita. E a autoridade, aqui, é sempre um símbolo. 

E assim acontece com o texto literário, com o fenómeno produzido pela fusão do alfabeto fonético e um meio ágil como o papel, por exemplo. 

É a predicação e a ilusão da contiguidade. 

A forma de uma sociedade organizada segundo os princípios da isonomia e da democracia é a mesma de um texto literário onde a história e o símbolo têm um papel preponderante. 

Mais refinado o texto literário, maiores as referências teleológicas internas, mais pontos de atracção encontramos - mas todos eles estabelecidos em função de uma estrutura comum de acção fortemente hierárquica. Ou seja, tudo organizado segundo um ponto de fuga principal. 

Outro aspecto típico da literatura é a departamentalização. Tudo no texto é departamentalizado. 

Na escrita fonética, o som é departamentalizado em unidades discretas.

Esse fenómeno desencadeia um processo de departamentalização em diferentes níveis, como uma espécie de processo de auto-similaridade. 

Tudo na percepção sensorial se fundamenta sobre a repetição, e a réplica é a sublimação por excelência desse fenómeno. 

Assim também acontece com aquilo que chamamos democracia moderna.

Todos os valores sociais têm o seu lugar, como também as pessoas, segundo um referencial primeiro - o poder - antes formalizado pela posse, pelo dinheiro, e mais tarde pelo consumo. 

Na literatura, a voz é desencarnada - separada do corpo, dos seus órgãos originais. Voz livre da boca e do ouvido. Não apenas a voz, mas a própria imagem é desincorporada, transformando-se em imaginação - tornando-se sem corpo. 

Quando lemos em silêncio, a desencarnação da voz e da própria imagem do mundo, associada aos movimentos oculares, gera uma lógica muito especial, um novo tipo de memória. 

Enquanto que a voz falada exige uma grande redundância como forma a sedimentar a memória de longo prazo, a escrita funciona como extensão protética daquele tipo de memória, libertando a mente para todo o tipo de especulação. 

Por isso, a nossa palavra especulação surge do Latim speculum, directamente relacionada ao espelho. 

 Para além da repetição das frases, outras duas formas de redundância especialmente importantes para o universo oral são as rimas e o ritmo - elas realizam um elemento de repetição suficientemente intenso para sustentar a fixação da memória de curto prazo em memória de longo prazo. 

 Por isso, o texto literário liberta a poesia do canto: o papel substituindo a função daqueles elementos de repetição. 

 E também por essa razão, os sistemas orais são muito mais tradicionalistas que aqueles cunhados pela escrita. 

 A redundância exigida pelo sistema acústico como condição para a sedimentação da memória de curto prazo em longo prazo implica um alto grau de repetição. 

As ideias de história, de filosofia e de ciência trazem consigo o princípio da descoberta, de algo que é diferente - pois o texto sobre o papiro ou sobre o papel é em si próprio um sistema de armazenamento informacional suficientemente estável para permitir uma reflexão sobre. Fenómeno que as correntes gnósticas medievais associavam directamente à Iluminação. 

 Por isso, é com a literatura que emerge a história, a filosofia e a ciência - ideias impossíveis num quadro de grande redundância sistémica. 

 Não por outro motivo chamamos a História Moderna como aquela que inicia-se com o Renascimento Italiano e principalmente após Gutenberg. E também por essa razão, aquilo que vulgarmente chamamos de história clássica começa, de facto, com a Antiga Grécia. 

 História enquanto técnica - logo transformada, em termos metalinguísticos, em tecnologia: a abordagem crítica sobre a própria técnica - redesenhando-a. 

 Foi necessário o aparecimento de um meio estável de armazenamento da memória de longo prazo para que a noção de história como a conhecemos pudesse surgir; um sistema de inteligência artificial que pudesse dar à nossa memória de curto prazo um coeficiente de redundância suficientemente intenso ao ponto de nos tornar capazes de estabelecer com rapidez e flexibilidade um exercício de loops informacionais contínuos sobre um largo contingente de dados. 

 Assim, é claro notar que todo esse complexo sistema de inteligência artificial estabelecido pela escrita fonética em fusão com meios como o papiro ou o papel não está fora dos seres humanos. 

Fenómeno que ilumina a ideia segundo a qual aquilo que chamamos de inteligência está entre nós, e que aquilo que conhecemos não nos pertence. 

 A palavra moderno lança as suas raízes ao Indo Europeu *med que indicava a reflexão sobre as questões de ordem, gerando não apenas a palavra meditação mas, também, medicina – pois, no passado, a medicina indicava o acto de reflexão, de meditação sobre o funcionamento dos nossos corpos. 

No século XIV a palavra moderno era resgatada do baixo Latim modernus que no século VI possuía a indicação de modo. No século XVI, após a popularização da imprensa de tipos móveis, ela passaria a ter o sentido pejorativo daquilo que é feito aqui e agora, com invenção, mas livre das amarras do passado, dos rígidos cânones da tradição e, portanto, destituído de grande valor. 

 O espírito da invenção, no sentido moderno do termo, nasce com a literatura, com a prosa. 

 O espírito da invenção implica uma relativa independência da nossa memória de longo prazo, isto é, a liberdade em tomar para si e pensar sobre – como alertava Eric Havelock. 

 Ou seja, há um terceiro termo que - associado aos princípios da isonomia e da democracia - projecta o que convencionamos chamar de modernidade: o princípio da revolução. 

 E a revolução é a transformação paradigmática de uma sociedade - o todo transformado. Essa é a lógica da literatura: cada livro é um universo em si. 

 A transformação paradigmática foi, ao longo dos séculos, o princípio por excelência das revoluções científicas, como mostrou Thomas Kuhn. 

 O texto escrito, tornado literatura, é único e paradigmático. Universos precisos, completos. Cada autor tem como meta ser detentor de um estilo claro e inequívoco. 

 O sistema da escrita fonética, estabilizada pelo uso intensivo através daqueles meios estáveis, velozes e flexíveis de armazenamento informacional, é paradigmático na sua essência. 

 O mesmo acontece com as estratégias tonais na música ou com a representação pictórica. 

 Nas sociedades orais, acústicas, a representação plástica geralmente é estruturada a partir de uma base geométrica, não raramente estabelecida por tramas feitas com linhas ortogonais, como acontecia com o Antigo Egipto; ou com os diagramas geométricos tão típicos do mundo medieval. 

 Mas, quando a escrita fonética emerge, associada a um meio dinâmico como o papiro ou o papel, aquela estratégia pictórica transforma-se rapidamente, assumindo uma estratégia antropomórfica - isto é, fazendo emergir, enquanto princípio lógico, aquilo que designamos como ilusão de contiguidade. 

 No mundo visual, ao invés dos rígidos quadros de linhas que designam o objecto, que lhe servem de formato padrão, surge o próprio corpo humano como referência fundamental para as medidas

 Mas, o corpo não está lá. Trata-se de uma referência segunda, degenerada, tal como ocorre com a metáfora. 

 É curioso aqui, questionarmos a estreita relação entre esse fenómeno e a emergência da ideia de isonomia - cada um é igual face à Lei, não mais uma Lei estabelecida por uma entidade religiosa, mas o ser humano como medida de todas as coisas – como defendia Protágoras, exactamente à mesma época em que a ideia de isonomia tomava forma definitiva. 

 No final do Império Romano, assim que a importação de papiro, principalmente de Alexandria, esgotava-se, as ideias de isonomia e de democracia desapareciam gradualmente, e a representação pictórica voltava a se sustentar em gráficos fortemente geométricos. A identificação visual do indivíduo desaparecia, dando lugar a um universo muito mais rico em termos de repetição dos eventos visuais redundantes. 

 O ressurgimento daquelas antigas ideias Greco Romanas aconteceria cerca de mil anos mais tarde, de forma gradual, fundindo elementos do universo anterior – tal como acontecera antes com o universo Homérico e a realidade de Péricles. 

 Assim, quando surgiu a tecnologia da perspectiva plana, a figura do príncipe trazia como conteúdo as ideias estabelecidas por Justiniano, e não a estratégia traçada pela perspectiva com um único ponto de fuga. 

Isto é, embora o príncipe seja um ponto de fuga único, ele ainda não satisfaz os conceitos de isonomia e de democracia. Ele é o símbolo para um novo meio. Conteúdo de um novo meio. 

 O termo literatura surge da palavra letra litteris, em Latim. 

 Por sua vez, a palavra letra lança-se à partícula Indo Europeia *l, que terá surgido de *r – que indicava a ideia de mover sobre algo, apontando para o acto de se deter sobre alguma coisa e mesmo de libertação. 

 Daquela antiga raiz surge *lag, que significava ligar, e *likh que, como variante fonética de *rikh, indicava a acção de marcar, de arranhar algo com um instrumento. 

 Uma das mais antigas palavras em Sânscrito, presente no Rig-Veda, é laksa, que indica a ideia de “signo”, com o qual um proprietário marcava o seu gado. Um conceito de propriedade, que indica a ideia de liberdade, de independência. 

 Mais tarde, do Sânscrito laksa surgiria laksmi, que era a noção de pura beleza, mulher de Visnu, representando riqueza e prosperidade. 

 As origens da palavra literatura associadas às ideias de “ligação” e de “signo”. 

 A escrita fonética foi o primeiro sistema de inteligência que inaugurou de forma radical o processo de desencarnação – separando o som da voz. O papiro – e, mais tarde, o papel – acelerou, ampliou e modificou esse fenómeno. 

 Em termos breves, tal como tratamos de diferentes tipos de memória, tomamos aqui diferentes faces do conhecimento – basicamente a cognição e a percepção. Dois sistemas fortemente referentes um ao outro, sem clara distinção. Verdadeiro paradoxo, a divisão faz-se somente com o objectivo de compreender o fenómeno – pois apenas a diferença produz a consciência. 

Tomamos a cognição como formação do conhecimento, na estruturação de uma complexa rede de relações sígnicas das mais diversas naturezas; e percepção como os princípios de estruturação do ambiente enquanto qualidade – considerando o ambiente como sendo tudo o que constitui as relações de existência. 

Uma das mentes mais brilhantes de sempre, o filósofo Americano Charles Sanders Peirce – que viveu entre 1839 e 1914 – elaborou uma estratégia para o estudo da linguagem – verbal ou não verbal. Chamou-a Teoria Geral dos Signos. 

 Peirce era um matemático e, assim, não elaborou uma estratégia que estivesse radical ou exclusivamente ligada à linguagem verbal. Portanto, o seu método é aberto a todo o tipo de linguagem. 

 Sinteticamente, Peirce partiu de uma estrutura triádica, formada por pólos relacionais aos quais chamou, simplesmente, de um, dois e três. 

 Quando digo a palavra avião, por exemplo, todos sabemos do que se trata, e temos, imediatamente, uma espécie de imagem – mas não podemos dizer que tipo de avião é. Não se trata exactamente de uma imagem. Qual o modelo, qual o tamanho, qual a cor? Tudo é desconhecido, mas sabemos, ainda assim, que é um avião. Essa espécie de imagem, de conhecimento inexplicável, de relação de qualidade com o objecto, é o que Peirce chamou simplesmente de um, ícone, ou ainda primeiridade. A palavra que desencadeou o processo é a relação de existência, um índice, sua segunda categoria relacional, ou secundidade. Finalmente, quando compreendemos aquilo que estamos tratando, levando ao domínio da razão, temos uma relação de lei, símbolo, ou terceiridade. 

Agora, imaginemos quantos graus de primeiros, segundos e terceiros são gerados a partir de um único signo – porque a existência isolada de um signo é sua aspiração impossível. Peirce estabeleceu um grande quadro de associações dinâmicas, nascidos daquele princípio sintético. A fusão de todos aqueles elementos é o signo. 

 Na realidade, não é possível explodir o signo em departamentos, e Peirce deixou bem claro esse facto. Trata-se de uma fragmentação que é e não é, simultaneamente. 

 Assim, o que chamamos de cognição está para a terceiridade de Peirce, como a percepção está para a primeiridade, tendo o ambiente – tudo o que é qualquer tipo de linguagem – como secundidade, o que desencadeia todo o processo. 

Por isso, o meio é a mensagem, como defendia McLuhan. 

 As ideias de Charles Sanders Peirce, tal como a brilhante intuição de Schopenhauer em relação a uma telecausalidade, estavam muito à frente do seu tempo. 

 E tudo isso ocorre porque as metamorfoses humanas não acontecem linear e diacronicamente, com um princípio, um meio e um fim – como nos ensina a literatura – mas se expandem como verdadeiros pulsares no espaço tempo. 

Por essa via, tomar a cognição como estando mais associada à categoria do símbolo, e a percepção às relações de qualidade com o objecto – ainda que enfeixados num mesmo complexo de acção – permite-nos estabelecer alguns interessantes princípios para a compreensão da mutação da ordem do pensamento. 

 Daí emerge a noção de resolução como um dado da percepção, e a definição como elemento cognitivo. 

 Ao lermos um texto geramos um universo de alta definição em baixa resolução. Lemos um texto literário e ele torna-se subitamente – como um efeito alucinógeno – num verdadeiro cenário de acção em alta definição.

Mergulhamos na história, como se lá estivéssemos. Mas, trata-se de um sistema de baixa resolução: letras que simulam sons e sons que simulam acção. Dois planos de degeneração que projectam um simulacro. 

 No universo acústico, tudo acontece em alta resolução e baixa definição – exactamente o contrário da literatura. A voz falada pertence ao corpo, ela acontece presencialmente, com definição total – mas, o nosso sistema de sedimentação da memória de curto prazo em longo prazo, funcionando em constantes apagamentos, em loops auto-referenciais, exige um elevado grau de repetição, de redundância, projectando uma realidade de baixa definição.

Com uma pequena capacidade de armazenamento informacional, a repetição implica menos diversidade. Essa é a natureza da imprecisão dos mitos. Por essa razão, o mundo oral é francamente bidimensional, enquanto que o literário, operando em profundidade e organizado predicativamente, é caracterizado pela terceira dimensão. 

Por isso, tudo na literatura acontece em profundidade – como um mergulho num universo paralelo: lâminas sígnicas interactivas num amplo padrão de simultaneidade. 

 Um universo de campos e atractores operando no sentido de uma única singularidade: o leitor. 

 Assim, a música seguiu a literatura com o aparecimento das sinfonias, os trabalhos mais elaborados de quartetos e conjuntos de câmara, as fugas e as mais complexas obras para piano – a partir do século XV até ao século XX: espécies de lâminas de eventos em simultaneidade, com a tonalidade enquanto sistema que organiza os sons em função de uma nota principal, ponto de fuga num sistema fortemente teleológico. 

 Com a aproximação do século XX, gradualmente, aquele processo de organização desintegra-se, com a Bagatela sem Tonalidade de Lizst, com o segundo movimento da Quarta Sinfonia de Gustav Mahler, com Jeux de Claude Debussy e, finalmente, com Arnold Schoemberg, Alban Berg e Anton Webern. 

 Tal como grande parte da música criada depois do século XIII até ao século XX, o livro é caracteristicamente um meio de mão única. Esse traço, aliado ao seu desenho de grande estabilidade, à quase imutabilidade das letras e das suas relações, projecta uma aspiração à homogeneidade – assim, nascem os aspirações por constituir regimes estáveis em sociedades padrão. Como um meio de expansão e articulação da memória de longo prazo, o papiro projectou a amplificação espaço temporal do Império Romano – quando o princípio de identidade tornou-se abstracto: a cidadania Romana. 

 Mesmo antes de a fusão entre o alfabeto fonético e o papiro terem alcançado intensidade suficiente para gerar o fenómeno Romano, já na Antiga Grécia nascia a ideia de oposição entre corte e província, cidade e interior, então tendo como elemento chave a palavra falada – porque o conteúdo de um novo meio é o seu meio anterior. Daí nasce a ideia de bárbaro, daquele que está fora de um contexto por falar diferente. A voz como conteúdo, como explicação, do novo fenómeno. 

 Apenas pode existir uma relação entre cidade e interior, corte e província, quando elas estão ligadas de alguma forma. E o papiro providenciou essa ligação. 

 O alfabeto fonético e o papiro estruturam um mundo de figura e fundo. Isso permitiu a Aristóteles – pertencente a um universo já razoavelmente literário – estabelecer os princípios lógicos do terceiro excluído, segundo os quais as coisas simplesmente existem ou não existem, assim como os princípios da causalidade local: todo o evento tem uma causa local e anterior. 

 Apenas o quadro estável de um universo destacado, separado da própria existência, uma realidade sobre a qual pode-se pensar como um todo uniforme, é que permitiu a emergência daquelas ideias.  

 A palavra realidade surgiria praticamente à mesma época da invenção de Gutenberg, e o seu uso conheceria uma forte expansão após a imprensa de tipos móveis ter projectado de forma amplificada aquele fenómeno de universo paralelo. 

 Mesmo antes de Gutenberg, com a expansão do mundo urbano a partir do século XII – quando o papel começava a ser fabricado no continente Europeu, primeiro na Península Ibérica e depois na Península Itálica – o processo de uniformização gerado pela literatura fez com que, gradualmente, fossem padronizados os comportamentos sociais à mesa e as relações humanas em geral – produzindo o que chamaríamos de boa educação. As estradas seriam pavimentadas, a mutilação física dava lugar ao cerceamento da visão nas prisões, e o tempo passava a ser definitivamente departamentalizado em unidades discretas. Tudo num processo que seria fortemente amplificado pela imprensa de tipos móveis metálicos de Gutenberg. 

 Erasmo de Roterdão, já no século XVI, trataria de escrever manuais de comportamento para crianças. É então que os livros libertam as mãos dos iluminadores e surge o princípio da caligrafia pessoal – com escolas que permaneceriam até ao século XX. As pessoas passaram a ser reconhecidas não apenas pela forma como falavam – mais ou menos obedientes ao texto escrito, denunciando o seu grau de literacia – mas também pela letra escrita. 

 É com a fusão do alfabeto fonético e o papiro – mais tarde o papel – que surge, ainda, o mundo estruturado por estereótipos – fenómeno típico do mundo literário. E o estereótipo opõe-se ao sagrado. Assim, o mundo Greco Romano era fortemente pagão, e a religião – embora presente – colocava-se em segundo plano. 

 Como uma espécie de contradição, a invenção de Gutenberg surgiu como uma defesa dos ideais de evangelização da Igreja Católica – e, embora tenha gerado uma formidável onda positiva para a Igreja, logo faria surgir Martinho Lutero e, paralelamente à sua expansão, a Igreja Católica foi se dessacralizando ao longo dos séculos. 

 O estereótipo é a base do formato – e, do comportamento humano aos artefactos, tudo é formatável no universo da literatura. 

 O mundo literário inaugura, ainda, o repúdio ao obsoleto. 

O obsoleto não é aquilo que não tem mais uso, mas sim o que, mantendo-se funcional, não é mais percebido. O obsoleto é o que entra no fluxo da rotina e torna-se redundante. Assim, no mundo tribal a ideia de obsoleto praticamente não existe. 

O obsoleto pertence ao passado, àquilo que já está integrado. O papel pertence ao futuro, ao permanente exercício de elaboração sobre o passado, transformando-o. 

É aqui, ainda, que emerge a noção de tradição, como produto da ruptura. 

E também aqui é estabelecida a ideia de confiança, de trust, como um compromisso de longo prazo – pois apenas um meio dinâmico, flexível e estável como o papiro e, mais tarde, o papel, cria a projecção do futuro. 

O aparecimento do telefone no século XIX surge como uma radical transformação das condições de definição e resolução estabelecidas pela literatura. 

Enquanto que a literatura opera em baixa resolução e alta definição, o telefone é caracterizado por baixa resolução em baixa definição. 

O nosso espectro de frequência auditiva vai dos dezasseis aos vinte mil ciclos por segundo – nos ouvidos mais apurados. Mas o espectro de frequência utilizado nos telefones gira em torno dos apenas três mil ciclos por segundo, que é a frequência de maior impacte na média dos ouvidos. Praticamente todo o resto é perdido. Ainda assim, somos capazes de reconhecer vozes e até mesmo de identificar diferentes instrumentos musicais pelo telefone, pois possuímos um sistema neuronal que completa a informação perdida. 

Por isso, é mais difícil falar línguas estrangeiras pelo telefone.

 Repetimos, involuntariamente, mais fonemas quando falamos ao telefone. Falar ao telefone, fazer-se compreender e entender o que o outro diz implica um aprendizado. Pessoas que nunca falaram ao telefone têm grande dificuldade tanto para comunicar como para compreender, quando o fazem nas primeiras vezes. 

 A baixa resolução e baixa definição impediu que o telefone se expandisse para além da comunicação individual. E o indivíduo torna-se conteúdo desse novo meio, resgatado da leitura em silêncio promovida pelo papiro e pelo papel. 

 O telefone – ao contrário do que acontece com a literatura – inaugura dois fenómenos fundamentais para se compreender o que viria a ser, cerca de cem anos após a sua invenção, o universo virtual: o tempo real e duas mãos de comunicação. 

 A forte interacção e o tempo real que desenham o telefone, não permitem que haja um formato – após a ligação ter sido realizada, todo o resto é improvisação: a articulação dinâmica entre as memórias de curto e de longo termo. 

 Por isso, embora tenhamos obras de vídeo, instalações, cinema ou livros, nunca existiu uma obra de arte de telefone – ainda que tenham existido experiências com a sua utilização. 

O fenómeno de desincorporação produzido pelo telefone é diferente daquele que caracteriza a literatura – não há mais corpo, mas existe uma ligação efectiva entre as pessoas. Não se trata de um meio que articula lâminas degeneradas, mas sim uma ligação directa. 

 No telefone tudo é surpresa e nada é invenção – porque no mundo oral tudo opera em diacronia: uma coisa depois da outra. Assim, para o universo acústico, o que se sabe agora apenas terá significado com o que vier a seguir, que será sempre uma surpresa. 

 O mundo da literatura assegura uma estabilidade do futuro e projecta a aspiração contínua à invenção; no mundo oral, tudo é mais redundante e tradicional mas – dada a natureza da relação entre as memórias de curto e de longo termos – haverá sempre o momento seguinte como elemento essencial. 

 O telefone amplifica o fenómeno oral – a intimidade do universo acústico, cheio de elementos inesperados mas sem invenção, sem descoberta. Tudo é efémero no telefone.

 Sendo uma espécie de universo ultra acústico, com um espectro de frequência reduzido, o telefone exige uma grande redundância de informação, implicando um profundo envolvimento das pessoas. 

Com o telefone, o desenho do indivíduo conhece uma mutação – ele torna-se consciente de si através da íntima ligação com o Outro. A participação total das pessoas ao telefone revela a experiência sensorial do Outro em cada um de nós. 

 Essa ligação íntima é gerada pelo tempo real – improvisação contínua.

Uma ligação que permitiu – junto com o automóvel – a rápida expansão espacial da família e das cidades. 

 Com o aparecimento da rádio, a voz isolada e amplificada torna-se via de mão única – também desencarnada, mas com um espectro de frequência bem maior e com um traço fundamental: a explosiva expansão espacial. 

 A rádio é sempre a voz do orador – a comunicação de um para muitos.

Mas, trata-se de um orador sem fronteiras – por isso as emissões de rádio foram sempre consideradas, desde o início, como uma questão de segurança de Estado. 

A rádio reverteu sensorialmente, num processo oximórico, o fenómeno criado pela literatura – não mais os mais diferentes personagens que acontecem em nosso corpo, mas personagens feitos de vozes desencarnadas – uma espécie de desencarnação do teatro. 

Essa desincorporação fez com que emergisse o ideal da voz pura. 

A voz sempre foi o elemento de integração social por excelência – a primeira coisa que fazemos ao nascer é aprender a falar. 

A palavra voz surge do Indo Europeu *wek, que significava falar e passou ao Sânscrito como vac – indicando não apenas a voz como também a ideia de divindade. 

Aquele misterioso ideal da voz pura praticamente exterminou com o bel canto, no canto lírico, e projectou com todos os poderes a figura do orador público – não mais uma pessoa falando para dezenas ou centenas, mas para milhões. 

Sendo o elemento de ligação social por excelência, a voz desincorporada trouxe os impulsos do super nacionalismo – gerando, entre outros desastres, a figura de Hitler. 

Todo o nacionalismo é essencialmente tribal. 

 Tal como acontece com a comunicação oral, a rádio não possui ponto de fuga – e grande parte da publicidade que surgiu após o rádio e o telefone tem um forte carácter gráfico bidimensional. 

 O cinema também acontece como via de mão única – tal como o rádio ou como o livro – mas lança uma nova revolução sensorial. Trata-se de uma linguagem de luz – luz projectada. Até então, praticamente tudo que existira  fora luz homogénea projectada sobre uma superfície de reflexão irregular – como acontece com os livros ou as pinturas. Com o cinema, esse fenómeno é invertido, sendo a luz irregular projectada sobre uma superfície reflexiva homogénea. 

 Não apenas, sendo uma espécie de câmara obscura artificial, ampliada para todos, os fenómenos visuais relativos ao movimento e à luz, que tipicamente funcionalizam a visão periférica, são subitamente concentrados na visão central – sensível à textura e à cor: aqui acontece o mágico sentido das fotografias e filmes em preto & branco: sentidos invertidos. 

 Essa reversão sensorial faz com que o cinema represente uma formidável concentração na visão central, com alta resolução e alta definição – desintensificando a visão periférica – sensível à luz e ao movimento. 

 A literatura activa dinamicamente ambos os tipos de visão. 

 Com a visão central temos o típico fenómeno da sístase – tudo tomado numa única vez. Quando admiramos uma obra de arte visual, não olhamos separadamente as suas partes. 

 Por isso, quando a fabricação de papel tem início no continente Europeu, surge a arquitectura Românica – caracterizada pelo desenho em compartimentos, pelas cores e texturas, pois ainda exercitávamos mais a visão central, não tínhamos ainda adquirido a prática da leitura em silêncio em grande escala.  

Apenas mais tarde, com o aumento do uso do papel, do alfabeto fonético e o aparecimento da leitura em silêncio, é que a visão periférica é suficientemente intensificada para que as catedrais Góticas possam emergir. 

 O fenómeno conhecido como sístase – tudo tomado numa única vez – projecta um mundo de departamentos mas com a sensação de continuidade e linearidade, pois a Natureza opera por contrários. Assim, também o universo acústico – cunhado pela diacronia – projecta um contínuo mundo de relações próximas, mas com a sensação de compartimentação, como as lâminas de uma cebola. 

 A visão periférica – luz e movimento – implica o aparecimento da ideia do paradigma, típica do mundo literário. Curiosamente, a estrutura dos filmes de cinema é, desde o início, e salvo raras excepções, a da literatura. 

 Mas o cinema inaugura uma nova estratégia: a montagem. 

 A montagem acontece devido à intensificação da visão central. Conjuntos de imagens que são montadas de forma a criar a sensação de continuidade, replicando o funcionamento dos movimentos oculares sacádicos. 

 Por isso o cinema privilegia os grandes planos – a montagem necessita de muitos elementos de similaridade para constituir um eficiente fluxo da história. 

A percepção da forma implica movimento. Ela depende de movimentos oculares involuntários, rastreamentos conhecidos como movimentos sacádicos. 

 Movimentamos os nossos olhos numa frequência de cerca de dez varreduras por segundo.

 As nossas retinas necessitam de uma intensa irrigação sanguínea – assim, existe à sua frente uma complexa trama de pequenas artérias, muitas delas impedindo a passagem de luz para as células fotoreceptoras. Se víssemos tudo, mesmo o que estivesse parado, também veríamos uma imensa quantidade de sombras – o que seria um grande e desnecessário volume de informação. 

 Os nossos cérebros criaram, então, uma estratégia económica para lidar com isso – apenas o que está em movimento é visível. Por isso, o olho parado não vê. 

 No cinema somos obrigados, sem que percebamos, a focalizar a nossa atenção visual a cerca de um metro atrás da tela de projecção – para podermos ver o filme. 

 Isto é, ir ao cinema implica uma educação – assim como falar ao telefone ou fazer um programa de rádio. 

 Quando focalizamos atrás da tela, incorporamos uma parte da visão periférica, que confere a qualidade de totalidade à acção. 

Mas, isso não ocorre com a televisão. 

 A tela da televisão e muito dos monitores de computadores, com as suas frequências de varredura, substituem os nossos movimentos oculares sacádicos, fazendo com que os nossos olhos parem. A percepção da forma passa dos olhos para o aparelho de televisão, como uma espécie de prótese sensorial inteligente. 

 Livre dos movimentos oculares, todo o resto desaparece, os nossos ouvidos ficam mais livres para a audição, e mergulhamos naquele universo televisivo. Isso é o fenómeno a que chamamos imersão – que apenas se tornaria popularmente conhecido com a revolução virtual. 

 Mas, há uma outra revolução inaugurada pela televisão: a luz emitida substituindo a luz projectada. 

 Até então, o único fenómeno relativamente controlado de luz emitida era o fogo. Com a televisão, a intensidade da luz em movimento altera todo o processo perceptivo visual. 

 A retina passa a ser massajada pela luz. 

 Com a televisão, a visão periférica desaparece; mas a massagem de luz transporta a visão periférica para o centro, tornando tudo num único e fluído movimento. 

 Meio de mão única, apenas um sentido na comunicação, a televisão é profundamente hipnótica – e o hipnotismo não conhece cortes ou montagens. 

Mas, a informação – quase como um mosaico de luz – não é inteiramente processada. Somente uma pequena parte da informação emitida pela televisão é memorizada, isto é, passa à memória de longo prazo. 

 Como mostrava McLuhan, a televisão é um meio frio. A baixa memorização leva a um preenchimento cognitivo daqueles vazios, a uma espécie de participação para completar o mosaico visual de luz. Uma operação de restauro da imagem pela sua superfície – não preenchemos ideias, mas vazios da imagem. 

 A televisão é um meio superficial por excelência. Por isso, as novelas Brasileiras e Mexicanas se tornaram rapidamente num sucesso mundial. Também por isso, os políticos que fazem sucesso na televisão são, inevitavelmente, figuras caricaturais. 

A palavra caricatura surge do Latim caricare, que significava carregar, exagerar ou, em outras palavras, aquecer a figura. 

 Boa parte do cinema popular tomou emprestado elementos da televisão, caricaturando personagens e situações, tratando-os em primeiros planos bem fechados. 

O primeiro plano fechado é outro elemento essencial na televisão – a baixa resolução não permite grande requinte de detalhes na imagem. 

 Na televisão há a desincorporação da imagem e do som. Ao contrário da fotografia, que em certo sentido funciona mais como a literatura: imagens bidimensionais simulando acções em baixa resolução e alta definição, na televisão tudo é abstracto, tudo está fora do ser. 

 Imagens de guerras vistas através da televisão têm geralmente menos impacte. Sociedades muito televisivas se tornam mais superficiais. Tudo girando em torno da memória de curto prazo – o aqui e agora. 

 Assim emerge o mundo do entretenimento – tudo transformado em superficialidade. 

 Em toda essa fabulosa metamorfose sensorial, a questão da identidade é sempre fundamental. 

 A identidade – do Latim idem, que significava igual – apenas pode existir com a diferença.

 Aristóteles estava alerta para a questão da identidade e a relacionou com o sentido de unidade. Por sua vez, a ideia de unidade está directamente associada á da repetição. 

Quando buscamos alcançar uma certo grau de unidade numa composição musical, por exemplo, utilizamos elementos de redundância que projectam o sentido de unidade. O mesmo acontece com a arquitectura, ou com qualquer outra linguagem. 

 Gottfried Wilhelm Leibniz, no século XVII – pertencente a uma sociedade já fortemente literária – defendia que a questão da identidade poderia ser compreendida através de uma formulação simples: se x é idêntico a y, então tudo o que for verdade de x também o é de y – que ficou conhecido como o princípio da indiscernibilidade de idênticos, ou simplesmente como a Lei de Leibniz. 

 Curiosamente, Leibniz aplicou o princípio Aristotélico do terceiro excluído como conteúdo para a questão da identidade – pois a sua identitas indiscernibilium estabelece a impossibilidade da existência, na Natureza, de duas coisas absolutamente iguais – sempre um novo meio tomando como conteúdo o meio anterior. 

 Bastante visual e literário, Leibniz sonhava com uma linguagem universal, uniforme e padrão.

  A ideia de identidade aqui é a do indivíduo que reconhece-se como tal e, assim, sendo diferente do Outro, mas pertencendo a um determinado grupo de ideias. 

 Uma complexa e, em certo sentido, paradoxal combinação entre igualdade e diferença, unidade e diversidade. Misteriosa combinação das ideias de Aristóteles e de Leibniz. 

 A violência nada mais é que a busca pela identidade. 

 Ao contrário do que muitas vezes se supõe, a violência não é um atributo da pobreza, da necessidade material. A luta pela sobrevivência não é um acto de violência. Há sociedades pobres violentas e não violentas; e, da mesma forma, sociedades ricas violentas e não violentas. 

 Tanto o mundo oral como o da literatura estabelecem fortes princípios de identidade. Para o primeiro, a identidade está no grupo, no clã, na tribo, no sistema que permite relembrar a todo o instante, em elevada redundância, os elementos de agregação e de desagregação. 

 Com a literatura, a identidade é estabelecida com o leitor em silêncio, ponto de fuga supremo de todo o processo, e, portanto, diferente de todos os mundos que não lhe pertencem. 

 Por isso, o mundo da literatura geralmente não considera como violência a eliminação daquilo que não é literário, daquilo que não está de acordo com o seu mundo. Daí, a violência estabelecida durante as descobertas marítimas do século XVI – que até hoje pertencem ao imaginário dos países Orientais – constar dos livros de história como factos de orgulho nacional. Daí, a violência brutal das conquistas da América Espanhola, a eliminação sistemática dos índios Americanos, e o fenómeno do racismo. 

O universo da literatura é o da exclusão – por isso, Aristóteles, num momento em que o universo literário ainda estava no início, elaborou o princípio do terceiro excluído. Não se trata de uma generalização ingénua, mas de uma coincidência de princípios lógicos. 

 No final da década de 1950 era estabelecido o início do que viria a representar uma fascinante metamorfose planetária, quando o Presidente Americano Dwight David Eisenhower criava a Advanced Research Projects Agency, mais conhecida pelas siglas ARPA, como reacção dos Estados Unidos ao desenvolvimento tecnológico militar Soviético, especialmente devido ao lançamento do Sputnik em 1957. 

 A função da ARPA era produzir uma arma invisível e indestrutível. A sua criação imitou, de certa forma, o princípio que caracterizou o projecto Manhattan, durante a Segunda Guerra Mundial – a multidisciplinaridade. 

 Era a mesma época em que John Cage e Merce Cunningham se encontravam no Black Mountain College e passaram a assumir, com Raushenberg o princípio de independência e simultaneidade da música, da dança e das artes plásticas. 

 Alguns anos antes, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, nos Laboratórios Psico-Acústicos da Harvard, um jovem e genial cientista chamado Joseph Carl Robnett Liklider utilizava complexos modelos matemáticos para compreender como funcionava a audição humana. 

Num determinado momento, os seus modelos matemáticos assumiram tal complexidade que tornou-se especialmente difícil lidar com eles. Liklider observou, então, que quando tratamos de equações aerodinâmicas ou de padrões de fluídos, tal como a viscosidade, o clássico processamento de informação numérica não tem mais importância, e o que passa a funcionar é o que se chamou de modelagem. 

 Em 1960, Licklider lançaria o livro Man-Computer Symbiosis, onde defendia, para a estupefacção de muitos, que «dentro de poucos anos, os cérebros humanos e as máquinas de computação vão ser unidas com grande proximidade, e o resultado dessa colaboração vai pensar como ser humano algum jamais pensou e processará informação de uma forma em nada parecida com as máquinas de tratamento de informação que conhecemos hoje em dia».

 Em 1962, Licklider era definitivamente integrado nos quadros da ARPA com o objectivo de inventar a arma invisível e indestrutível. Rapidamente, ele descobriu que a mais poderosa arma apenas poderia ser informação. Assim, elaborou e passou a coordenar um programa de interactividade na estruturação de redes de computadores, que ficaria conhecida por ARPANET. 

 Pela sua própria natureza, informação espalhada por diversos pontos, holograficamente, é algo indestrutível – pois só poderá ser destruída se o todo também o for. 

 Em 1985, a fusão da ARPANET com a NSFNET – National Science Foundation Net – significaria o início do que conhecemos como Internet. A National Science Foundation foi criada em 1981, com o objectivo de criar uma rede aberta permitindo aos investigadores académicos acesso a supercomputadores. 

Dezassete anos antes, em 1968, Licklider defenderia: «Queremos enfatizar algo para além da transferência one-way: o significado mais e mais importante do construtivo pela união, do aspecto do mútuo reforço através da comunicação – algo que transcenda a afirmação ‘agora nós dois conhecemos um facto que apenas um de nós sabia antes’. Quando as mentes interagem, novas ideias emergem». 

 Isto é, tudo junto na fusão da televisão com o telefone e, também, de tudo o que conhecemos. Aqui tem início uma profunda metamorfose civilizacional – o universo virtual. 

 A palavra virtual surge do Latim virtus, que indicava a ideia de potencialidade.

 No mundo virtual, tudo é possibilidade total. 

 As redes de redes de sistemas de telecomunicação interactiva em tempo real estabelecem um meio de meios, em múltiplo sentido de interacção. 

 Deixam de fazer sentido os conceitos de resolução e de definição. O universo das redes está presente em todo o lugar, dos telefones ao design dos automóveis, das televisões aos livros. 

No centro dessa metamorfose civilizatória surge uma nova sociedade: o teleantropos cunhado por René Berger – o ser humano feito também à distância, dando ao conceito de proxemia criado por Edward T. Hall nos anos 1960 uma nova dimensão e projectando uma inédita e surpreendente teleproxemia. 

Teleantropos significa, em poucas palavras, a formação do ser humano não mais num contexto local, mas num ambiente global. Recebemos informações de todo o planeta, a todo o instante. Enganamos as estações climáticas transportando todo o tipo de vegetais e de alimentos através de milhares de quilómetros de distância. Transportamos todo o tipo de órgãos humanos, até mesmo sangue, num certo sentido combinando todo o tipo de informação genética. Imagens, sons e ideias viajam pelo planeta em tempo real. 

 Mas essa formidável expansão não acontece apenas em termos espaciais.

Mergulhamos em antigas culturas já desaparecidas, línguas que cunharam antigas civilizações – com a nossa educação passando subitamente a penetrar no mais profundo tecido cultural, nas referências mais inesperadas, alcançando as partículas sub-atómicas, as Super Cordas, buracos negros, e até mesmo regiões do espaço sideral nunca antes sequer imaginadas. 

 Tudo forjado pelas incríveis distâncias no tempo e no espaço, fundidas quase sempre em tempo real – esse é o signo primeiro do teleantropos. 

A proxemia, designada por Edward Hall, significa uma espécie de territorialidade local, de carácter cultural e corporal, que nos faz questionar por que razão um Africano ou um Sul Americano se tocam fisicamente mais do que um Europeu do norte, por exemplo. 

A teleproxemia elevou esse tipo de questionamento às relações realizadas através do ciberespaço, ao universo desincorporado, quando – apenas para citar um exemplo – muitas vezes não sabemos sequer como é a aparência da pessoa que está do outro lado da nossa via de comunicação virtual, embora possamos sentir um elevado grau de intimidade com o seu contacto. 

 Informação e matéria circulando velozmente por todo o planeta. 

Tudo se tornando diversidade total. 

Tudo sendo contaminação global. 

Espaços em praticamente todos os lugares, passado e futuro – tudo coincidindo no aqui e agora. 

A lógica desse fabuloso universo de múltiplas mãos, inaugurado pelos sistemas de telecomunicação interactiva em tempo real e pelos sistemas digitais de modelagem, não é mais aquela do terceiro excluído de Aristóteles – mas a lógica do signo de Charles Sanders Peirce e o princípio lógico que ficaria conhecido como terceiro incluído, elaborado pelo matemático Francês Stéphane Lupasco. 

Isto é, ser e não ser – eis a nova questão. 

A lógica de Lupasco possibilita a existência e a não existência, tal como a célebre experiência do gato de Erwin Schrödinger. Um princípio que pode ser sintetizado em a, não-a, a e não-a – como a nova condição da realidade. 

Emerge a telecausalidade anunciada por Schopenhauer ainda no século XIX – o bater de asas de uma borboleta na Austrália pode provocar um furacão nos Estados Unidos. Curiosamente, muitas vezes permanecemos unidimensionalmente estruturados em termos temporais acerca de um tal fenómeno – mas, a telecausalidade é, antes, um fenómeno de espaço tempo.

Isto é, a causalidade não mais estaria restrita a um único quadro de espaço tempo. 

Estabelece-se uma realidade do instável, do imprevisível, da surpresa a todo o instante – e, portanto, da máxima criatividade potencial. 

O que antes era caracterizado por uma relação estável entre memória de curto e longo termos, é agora completamente transformada em um novo contingente informacional de longo termo realizado pelas próteses digitais em rede, e pela dinâmica articulação de outras próteses de memória de curto prazo. 

Os programas digitais de busca de informação e edição – de qualquer natureza de informação – são, por exemplo, verdadeiras próteses inteligentes de improvisação, isto é, de dinâmica articulação entre memória de curto e longo termos. 

A palavra prótese lança suas antigas raízes etimológicas no termo Indo Europeu *dhe, que significava colocar. Passou ao Grego como thê, que gerou, por exemplo a palavra thêke, significando caixa, depósito, ou colocar dentro – daí a nossa palavra biblioteca. Junto à partícula Latina pro, tornou-se prótese, com o sentido de colocar algo sobre. 

A prótese não é apenas uma extensão, mas algo diferente que associa-se criativamente à função da extensão. 

Enquanto que o mundo literário era privilegiadamente um universo de extensões do corpo humano, o mundo virtual revela-se potencialmente como um universo de próteses – não apenas sobre o corpo, mas também sobre as suas extensões, sobre aquilo que é desincorporado. 

Nesse novo universo, as nossas memórias se tornam tão infinitas como absolutamente voláteis. Em termos imediatos, basta considerar a intrusão de um vírus e o súbito apagamento de uma gigantesca quantidade de informação, num repentino processo de amnésia – que pode ser colectiva. 

A extrema volubilidade sensorial trás à consciência o desenho multidimensional dessa nova realidade como uma profunda metamorfose civilizacional. 

E, para além do fenómeno de preenchimento de informação pela superfície, originariamente gerado pelas telas de televisão, de forma semelhante ao que ocorre com o universo acústico e tribal, a nossa memória pessoal de longo prazo também passa a exigir um maior grau de redundância, de repetição.

Repetição sobre superfície – e, assim, temos a emergência do entretenimento como signo primeiro de praticamente tudo. 

Automóveis, que antes tinham no transporte a sua principal função, transformam-se em gadgets. Cidades, como Paris, Veneza e muitas outras, são redesenhadas em gigantescos parques temáticos. 

Roupas se transformam em símbolos de marcas. Tudo é rapidamente esquecido e renovado. 

Assim, desaparecem rapidamente os modos estereotipados de comportamento social – tão característicos a partir da imprensa de Gutenberg. 

A identidade torna-se efémera e volátil. Tudo pode pertencer a tudo ou a nada, imediatamente. Mais do que isso, tudo passa a pertencer a tudo e a nada, imediatamente. 

O planeta se transforma na emergência do obsoleto – tudo tornado no tecido contínuo do uso e do consumo. 

Grandes pensadores que, embora aparentemente integrados nessa trama de profundas transformações, praticamente não têm mais valor. Políticos que alteram livremente antigas leis com o objectivo de acobertar o que antes seria considerado crime – sem que haja qualquer reacção popular ou qualquer outro tipo de reacção. 

Pessoas das mais diversas actividades que se sentem obsoletas, inúteis – pois a utilidade está ligada ao futuro, àquilo que gera algo. Pessoas ignorantes eleitas para importantes cargos públicos, em todo o mundo. Atletas e actores do entretenimento recebendo milhões; professores e filósofos abandonados pela sociedade. 

A inutilidade está directamente associada ao obsoleto e, ambos, à desfuncionalização. 

Um dos elementos centrais da identidade é a função social, aquilo que nos diferencia e nos une à sociedade. Sem identidade, emerge a violência, nas suas mais diversas formas. 

A volatilidade dos sistemas em rede – em termos de memória de curto e longo termos – amplifica o fenómeno produzido pela televisão e pelo telefone, gerando um universo de entretenimento. Tudo torna-se entretenimento, média, variações do que já se conhece – tudo associado aos princípios da inutilidade e da obsolescência. 

O consumo, antigo padrão social por excelência, dá lugar ao uso – aquilo que viria a ser conhecido como Low Power Society: uma sociedade de acesso quase livre a objectos que pouco antes estavam restritos aos mais ricos.

Clássicos do cinema, gravações musicais de todos os tipos, imagens fotográficas em alta definição, entre tantos outros objectos passaram a ser comercializados em supermercados ou distribuídos, por vezes a preços simbólicos, através das redes virtuais – mas, tudo tendendo a uma gigantesca mediocridade, ao puro entretenimento. 

Por outro lado, como se estivéssemos tratando de um gigantesco sistema em dissipação, caracterizado pela viscosidade, emergem pontos de alta densidade espalhados pela trama das redes. 

Toda essa estrutura de complexidade transforma a natureza das mutações paradigmáticas em metamorfoses sintagmáticas – mudanças contínuas em cadeia num quadro não-linear. 

Assim, emerge a ideia de uma dinâmica ideosfera – para além de uma atmosfera e de uma biosfera – termo cunhado por Jacques Monnod ainda nos anos 1960. 

As ideias de corte e província desaparecem, dando lugar às megacidades, onde todas as realidades convergem, e ao campo que gradualmente aproxima-se da realidade urbana. 

A quantidade de informação altera o conceito de história – projectando uma pós-história, num sentido diferente daquele anunciado por Francis Fukuyama. Isto é, a história – como um perfil de dados específicos acerca de factos que desenham uma sequência de acontecimentos – tecnologia produzida pela literatura tomando como conteúdo a diacronia do universo acústico – simplesmente desaparece. 

Passamos a ter todas as histórias possíveis sobre um mesmo acontecimento, todas verdadeiras, e muitas vezes contraditórias. 

Tal como é vivido por um líder tribal, também no universo digital a história não mais pode ser cortada aos pedaços. 

A aspiração máxima e impossível do signo é o seu objecto. Impossível porque uma vez alcançada, o signo deixa de o ser para se tornar no seu próprio objecto. Da mesma forma, a aspiração máxima e impossível da história, uma vez alcançada, através do imenso volume de informação, significa a sua desintegração. 

Por essa via, os gigantescos bancos de dados que até mesmo cada um de nós passou a acumular, revelam-se antes como espécies de réplicas do passado, transformando a história numa multiplicidade de ficções, todas como tratamento da realidade – incorporando todos os tempos num único sistema. 

Isso levou René Berger a questionar se não estaríamos, afinal, penetrando no universo do fim da ontologia – fim da descoberta de nós mesmos, daquilo que constituímos enquanto inteligência. 

Alexandre Herculano, nas suas Lendas e Narrativas, dizia que «com Kant o universo é uma dúvida: com Locke é dúvida o nosso espírito: e num desses abismos vem se precipitar toda a ontologia». 

Mas na média, no entretenimento, não há mais lugar para a dúvida. Todos os deveres, que são cunhados pela dúvida, transformam-se nas certezas dos direitos. E todos passam a lutar exclusivamente pelos seus direitos. 

De facto, não há mais a ontologia do espírito individual, mas a emergência de um outro tipo de dúvida e de descoberta – presentes um pouco por todo o lado, mas também ausentes, tudo formando um meio volátil de complexidade. 

A antiga ontologia de natureza literária transforma-se no incessante apagamento de descobertas e no simultâneo aparecimento de novas e inesperadas dúvidas, projectadas pela imensa escala informacional: perplexidade. 

Partimos de estruturas sociais fortemente teleológicas e transformamo-nos gradualmente num gigantesco organismo articulado por espécies de nuvens informacionais de natureza fortemente teleonómica. 

A máxima Socrática, segundo a qual tudo o que sei é que nada sei – anunciando o mundo literário, voltado para o futuro – transforma-se em tudo o que sei é tudo e é nada. 

A aspiração a uma verdade absoluta, razão da dúvida, desintegra-se com a própria ideia de verdade. Aquilo que chamamos de verdade nada mais é que o significado das coisas. Quando nos aproximamos da própria coisa, deixamos de tratar de significados. 

E, assim como apenas a diferença produz a consciência, mergulhamos gradualmente num mundo de tantas diferenças que elas praticamente deixam de existir. Um mundo de nano-decisões e de nano-diferenças ou, em outras palavras, num universo que aspira à diversidade pela superfície. 

É curioso reflectirmos sobre o facto de que a literatura produziu a aspiração a um universo homogéneo, feito de partículas discretas intercambiáveis, mas que produziu um mundo de profundas assimetrias; e que o universo virtual projecta o ideal da diversidade cultural e da homogeneidade económica, gerando um mundo homogéneo em assimetrias, onde mesmo as brutais diferenças, traduzidas pela fragmentação em nano partículas de acção espalhadas pelo planeta – evidenciadas pela violência, pelas guerras e pela miséria – são, em geral, tomadas como simples dados de entretenimento.

Violência e corrupção são a mesma coisa. A palavra corrupção significa literalmente romper aos pedaços, destruir

Muitos dos actos de evidente corrupção se transformaram em dados anedóticos para discussões sociais de entretenimento. 

Passamos a girar em torno das categorias que Charles Sanders Peirce chamou de primeiridade e de secundidade: ícone e índice: relações de qualidade e relações de existência com o objecto – essa é a realidade do entretenimento. 

Assim, a Lei passa a aspirar a um ethos planetário, como conteúdo de uma nova realidade, na tentativa de estabelecimento de uma ética global. Mas é, de facto, volátil e não obedece mais à estabilidade sistémica exigida por um corpus legal. 

Aquilo que definimos no Ocidente, ao longo dos séculos, como arte, indicava a crítica da cultura, não pelo conteúdo, mas pela estratégia, pela estrutura. 

Assim, no período Moderno, desenvolveu-se a pintura, a escultura, a fotografia, para além de todas as mais diversas manifestações de arte. Tudo voltado para o futuro, para o questionamento, para a mudança, para a reflexão – o que dava vida à cultura do que Karl Popper chamou as sociedades abertas. 

No universo virtual, arte e guerra se transformaram em entretenimento contínuo. Mas, quase em paradoxo, emergem pontos de alta densidade de não-entretenimento. Pontos por vezes deslocados no espaço tempo, localizados fragmentariamente no tecido da não-arte. Por isso, não raramente, espantamo-nos ao encontrar momentos de alta densidade em anúncios publicitários, no design industrial, no cinema ou mesmo na música popular. 

Toda essa misteriosa estrutura de complexidade possui fortes elementos de ligação ao mundo acústico – pela superfície. Mas, traz, também pela superfície, o meio literário – oposto ao mundo oral – como conteúdo. Por isso, é um universo que é rápida e superficialmente absorvido pelas sociedades tribais que, todavia, o tomam como signo por excelência do inimigo. 

Assim, a nossa estrutura de pensamento, os princípios de agregação e de desagregação, as nossas estratégias de generalização, conheceram uma profunda metamorfose. 

 O humano, antes relacionado ao humus, à terra, à propriedade visual, transforma-se em virtus – desmaterializando-se em potencialidade total. 

 Os antigos princípios de organização das sociedades orais, desenhadas por pequenos grupos sociais ligados entre si, e das sociedades literárias consolidadas na forma da urbis, dão lugar à pulverização no espaço tempo. 

Por isso, encontramos no novo universo virtual grupos que se superpõe numa ampla estrutura de redes de redes de telecomunicação interactiva em tempo real. 

 Sendo o princípio da isonomia uma ideia de uniformização, ele vai se desintegrando gradualmente. 

O sistema tributário, um pouco em todo o mundo, passa a ser ineficaz em relação às grandes empresas ou grandes fortunas, incindindo mais ferozmente sobre o cidadão médio, gerando um efeito de profunda perda de credibilidade do mundo político. Mecanismos contábeis transferem imediatamente recursos de um ao outro lado do planeta. 

Em nome da segurança e do bem estar, tudo transforma-se em perseguição burocrática, afectando principalmente o indivíduo. 

 É então que, no início do século XXI, emerge – um pouco por todo o planeta – questões sobre a validade da democracia. Quem seria igual a quem? Um miserável drogado teria o mesmo valor para a sociedade que um cientista? Um terrorista teria os mesmos direitos que um cidadão cumpridor dos seus deveres? 

 Tudo passa a ser lugar para julgamentos de valor, porque nem todos são iguais face à Lei – e a própria Lei torna-se instável. 

A desigualdade face a um sistema instável que idealmente visa submeter a todos, produz o sentido de insegurança e de perseguição, assim como a aspiração – por vezes velada – ao controle, à vigilância permanente. 

 A isonomia, a departamentalização e a atomização são elementos fundamentais para a compreensão do espírito da democracia. Com a emergência do mundo virtual, não há mais departamentos precisos – e, assim, não há mais partidos ideológicos. A antiga atomização, reconhecendo uma fragmentação em unidades discretas, desaparece sob a paradoxal híper pulverização num sistema de nanodecisões que – tal como acontece com a luz – comporta-se, simultaneamente, de forma discreta e contínua. 

 Grupos interdependentes, elementos discretos e simultaneamente contínuos e uma desigualdade dos indivíduos face à Lei: elementos turbulentos de um sistema instável e volátil, redesenhando os princípios da democracia. 

 Ficamos chocados quando testemunhamos – um pouco em todo o mundo – a livre transgressão daqueles antigos princípios que fizeram emergir o ideal da democracia e da isonomia. Mas é importante notar que não há praticamente qualquer reacção quando tal acontece. 

 Enquanto que na isonomia e na democracia não há questões pessoais, no universo das telecomunicações planetárias interactivas em tempo real tudo é pessoal. 

A profunda transformação sensorial conduz a algo semelhante, em certo sentido, às ideias defendidas pelo Imperador Justiniano, no século VI AD, justificando - em nome da segurança e do bem estar geral - o fim do princípio da igualdade de todos face à Lei, fim de um corpus legal estável, e o fim do direito do indivíduo tal como o conhecemos. 

Mas agora a figura do príncipe acabaria por ser substituída pela das grandes corporações planetárias que vão substituindo gradualmente os governos eleitos. 

Por outro lado, estabelecidas na profunda volatilidade do sistema, surgem - efémeras - redes de corporações virtuais e de organizações não governamentais. 

Alguns historiadores defendem que a emergência de um quadro de grande complexidade é sinal evidente de futuro colapso e decadência. 

Trata-se, entretanto, de uma falsa questão. No universo da biologia, todos os organismos superiores são complexos. 

A complexidade emerge como resultado teleonómico de sistemas de comunicação e de armazenamento informacional suficientemente flexíveis e dinâmicos. Quando essa condição deixa de existir, o sistema entra em colapso e, naturalmente, simplifica-se.

A complexidade não é, em si mesma, um sinal de decadência iminente, mas sim uma eventual perda de flexibilidade e dinâmica informacional. 

Outra questão que por vezes tem sido colocada é saber como pensamos, se aquilo que sabemos é antes a nossa forma de conhecer, tal como defendia Kant, ou se há uma verdade absoluta, matemática, superior à estrutura do ambiente. 

Por exemplo, poderá o estabelecimento do silogismo, surgido com a escrita, representar uma verdade absoluta? 

A resposta está na escala. O tempo assimétrico defendido pelos investigadores de sistemas dissipativos funciona numa determinada escala, como ensinou John Wheeler. O mesmo acontece com a natureza das partículas subatómicas, com as Super Cordas ou com os buracos negros.

 Se existisse uma verdade absoluta, superior à estrutura do ambiente, o mundo não estaria em contínua transformação. 

Não se trata, entretanto, da defesa de uma via sensacionalista, colocando as faculdades sensoriais como soberanas no processo de estruturação mental: sentidos, processos neuronais, linguagem verbal ou não verbal, tudo estabelecendo uma trama sinergética de acção. 

Tratamos de um mundo em contínua metamorfose, onde os valores humanos estão sempre em transformação. 

Não significa defender que a democracia ou a isonomia simplesmente deixaram de existir. Embora em alguns aspectos, essa afirmação possa até ser verdadeira. 

O mais interessante é observar esse processo de mutações e reflectir sobre a natureza das mudanças. 

Também, não se trata de querer mudar o mundo. «Como mudar o mundo, você só tornará as coisas piores», dizia John Cage. A estratégia é mudar num mundo em mudança. 

Para mudar é preciso conhecer. 

O universo do híper cultura enquanto entretenimento intensivo gerou um outro fenómeno: a tendência para o jogo de soma zero. 

Os jogos de soma zero são aqueles onde há perdedores e vencedores, presas e predadores - tal como acontece nas florestas, nos mares. 

A natureza daquilo que chamamos de civilização é essencialmente jogo de soma não-zero: colaboração. 

Um dos traços característicos do universo Greco-Romano era exactamente o elevado grau de conflito na concorrência entre pessoas. O papiro e o alfabeto fonético reduziram as relações interindividuais redundantes que asseguravam os laços de identidade no universo acústico. 

As redes de telecomunicação interactiva global em tempo real acentuam ainda mais esse fenómeno. Por isso, muitas pessoas aderem às conversas em tempo real, que muitas vezes não têm qualquer sentido, mantendo-se na superfície, mas que dá aos seus utilizadores a sensação do contacto redundante, típico das sociedades orais. 

Tornamo-nos imediatamente tudo: editores, compositores, fotógrafos, dactilógrafos, secretários, realizamos as funções do correio, fazemos muito do trabalho dos contabilistas, dos analistas, redactores, escritores - tudo sem sair de casa. 

Ao invés de libertar o ser humano do trabalho, os sistemas digitais concentraram as mais diversas formas de trabalho em cada pessoa. 

Não é mais necessário negociar, orientar, estabelecer estratégias entre pessoas - mas apenas participar, elaborar e entrar no fluxo. Não há mais futuro, mas tudo aqui e agora. 

O efeito gerado pela participação massiva e superficial nas redes é a da anulação do Outro. Todos correndo pela concorrência, por aquilo que ficou convencionado como competição - que nada mais é que jogo de soma zero. 

Uma questão de identidade: a eliminação do Outro para o estabelecimento do Eu que, desincorporado, tornado efémero, precisa de ser continuamente renovado, tal como acontece com qualquer produto comercial. 

Assim, a educação, a cultura e a saúde vão sendo considerados, gradualmente, como bens a serem adquiridos, e não como direitos de cidadania. 

O mundo das redes desintensifica a noção de colectividade urbana; mas também desintensifica a noção do super indivíduo, ambas formalizadas pela literatura. É o paradoxo dos fones de ouvido que transferem a estereofonia para o centro da cabeça, e dos suportes de música que alteram o ambiente acústico transformando-o de colectivo, como o urbano, em estritamente individual, mas cunhado por uma imensa média; e as conversas contínuas e superficiais em tempo real nas redes, ou mesmo participação em jogos, não menos superficiais, por pessoas distantes milhares de quilómetros umas das outras. 

Agora, é o indivíduo por quinze minutos - tal como a fama anunciada por Andy Warhol - sempre precisando de ser renovado. E a identidade passa, muitas vezes, a ser estabelecida por algum tipo de violência - através da competição, através de um nihilismo devorador e consumista, ou mesmo através de actos de agressão física, tudo dependendo de cada um. 

O indivíduo passa a pertencer a uma colectividade sem ethos, flutuante e instável. 

Um mundo feito de colectividades sem ethos não possui mais políticas de esquerda ou de direita que, nascidos na Revolução Francesa, tornam-se símbolos utilizados muitas vezes sem qualquer relação com o seu antigo significado. 

Nas redes não há mais centros ou explicações absolutas – pois a explicação é uma questão predicativa por excelência. 

 A palavra fé - tão afastada do mundo científico, considerada como algo pessoal, profundamente subjectivo, sem possibilidade de generalização - tem a sua origem etimológica na raiz Indo Europeia *bheidh, que significava a ideia de ter confiança, transformou-se no Latim fides

 É daí que emergem os princípios da fidelidade e do trust - ambos fortemente relacionados à expectativa do futuro, amplificada pelo alfabeto fonético e pelo papel. 

 Mas, se a antiga ideia de fé estabelecia a crença num Deus isolado, pertencente a um universo paralelo, intocável - o mundo virtual, como potencialidade total, transforma aquele mundo, antes inatingível, no aqui e agora. Assim, a antiga fé naquilo que virá transforma-se na fé como algo imediato, livre do futuro. 

 A palavra fé sempre esteve associada ao sagrado - e o universo literário, com a expansão do estereótipo, desintensificou fortemente a presença do sagrado. 

A condição do sagrado é aquela do tempo livre, do livre pensar. 

 Com a fusão entre o alfabeto fonético e o papiro, a prosa tomou o lugar da poesia. 

 Gradualmente, a revolução virtual faz emergir uma nova condição do sagrado, de uma nova condição de tempo livre, e um novo tipo de poesia - muitas vezes não verbal. Por essa via, a antiga fé num mundo paralelo visual transforma-se num outro tipo de fé, mergulhando pelo fabuloso universo digital. 

O antigo ideal da confiança, fixo na expectativa do futuro, transformou-se na vivência imediata de toda a informação. 

 O mundo constituído pelo entretenimento contínuo, livre de dúvidas, com tudo previamente conhecido, projecta - paradoxalmente - um sentido de dúvida contínua: nada se pode saber, pois tudo já é conhecido e apenas a diferença produz a consciência, assim a dúvida é total. 

 Tudo se transformando em permanente dúvida - não mais uma dúvida precisa, específica e especializada, voltada para o futuro, aspirando a uma explicação. 

A palavra dúvida surge do Indo Europeu *duwo, que projectou a nossa palavra dois. Passou ao Latim dubio - que significava a indecisão entre duas ou mais alternativas. 

 Num universo de pós-história, desenhado pela mudança contínua, ainda que num quadro de superfície; tudo são certezas, entretenimento que repete-se, mas a quantidade de informação nos traz todo o tipo de incoerências, de instabilidade e de turbulência, numa onda paradoxal, cuja fabulosa escala projecta um mundo onde praticamente tudo pode ser caracterizado pela dúvida. 

Uma nova civilização, iluminada por um antigo ditado Zen: «Quando há suficiente fé, há suficiente dúvida - que é o grande espírito do questionamento, e quando há um grande espírito de questionamento, há iluminação». 

Um pensamento que nos faz admirar a proximidade fonética entre a palavra Latina mundus - mundo em Português - e a expressão Budista Japonesa mondo, que significa literalmente perguntas e respostas.

 

EMANUEL DIMAS PIMENTA (BRASIL/PORTUGAL/MUNDO)
T
em sido considerado um importante compositor, arquitecto e artista intermedia, em todo o mundo no início do terceiro milénio - segundo declarações escritas por personalidades como John Cage, Ornette Coleman, Merce Cunningham, René Berger, Lucrezia De Domizio, William Anastasi, Daniel Charles e Dove Bradshaw entre outros.

Os seus trabalhos estão incluídos em algumas das mais expressivas colecções de arte e instituições reconhecidas internacionalmente como o Whitney Museum de Nova York, o Museu de Arte Contemporânea ARS AEVI, a Bienal de Veneza, o Computer Art Museum de Seattle, o Kunsthaus de Zurique, a Colecção Durini de Arte Contemporânea, a Bibliotèque Nationale de Paris e o MART - Museu de Arte Contemporânea de Rovereto e Trento, na Itália, entre outros.
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