Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE II - FRAGILIDADES, LISBOA

4. Eu pertenço à geração pós-moderna, nunca me senti tão isolado!

Por um mecanismo de defesa inconsciente, a afastar-me da minha própria amargura, a memória trouxe até mim o pintor. Tinha de o encontrar, era a ele que buscava e não à visão da minha íntima ruína. Onde estaria? Chegam-me aos ouvidos bocados de conversa a faiscar de referências cultas, eles mesmos rostos cintilantes, conhecidos do teatro, cinema, televisão, jornais, música. Música... Talvez o amor seja um oceano, cheio de conflitos e sofrimento... Porquê reter assim no ouvido dois versos, de uma forma tão obsessiva? Começavam a irritar-me na sua adocicada insistência. Como se insinuassem que devia concentrar-me nela, na morta, morta enquanto ouvia música. Ouviria? Gravava, ela estava a gravar... Gravava que música? Tinha de lá voltar, precisava de descobrir pistas que me levassem até à cassette. Uma pessoa que morre de auscultadores na cabeça e microfone na mão não está só a ouvir música, está a gravar. A menos que cantasse, gravasse a sua própria música. Só ouvindo a cassette, para verificar. Estava cansado, cansado de mim, de me ouvir intimamente. E os outros, também. Pareciam todos muito cansados, mal agitando o pé nos bancos altos ao ritmo do reggae. Bob Marley a pairar sobre o fumo denso. No chão, sentado entre um casal de jovens, um rapazinho de olhos pisados e muitos anéis no cabelo dá largas à sua sua emoção:

— Eu sou da geração pós-moderna... — geme. — Nunca me senti mais isolado em toda a minha vida!...

— É da cerveja, pá! — mitiga a moça, sentando-se na posição do lótus. — Não tens feito outra coisa a não ser beberl

Junto do bar, numa clareira aberta sob jorros de luz, há quem dance. Beatificamente, os pés imóveis, o corpo mal oscilando numa possível aragem de agitar um junco. De cabeças tombadas sobre o ombro, ou deixando cair os cabelos ao longo dos seios. Ninguém dança com ninguém, suspendem-se da música, espectrais, como folhas murchas de begónia. Se assoprasse, talvez o meu bafo os levasse a cair, a desmoronar-se na areia, frágeis castelos de cartas. Como eu. Bob Marley enche o ar com os sons do seu amor jamaicano.

 

Bob Marley, «One love»

Devia estar numa fase depressiva, e não era caso para menos. A noite só me trazia encontros difíceis, visão de precaridade, infortúnio. Tudo se me afigurava antiquado, mortiço, decadente. E o clamor da minha própria infelicidade, numa torrente de água, a inundar tudo. Por um tempo julguei ser possível reconciliar-me com a Xandra... Não, estás louco, Eduardo? Saiu-me pela boca fora o desabafo, olham todos para mim. Estou a confundi-las de novo, como se a Marta, minha ex-mulher, fosse a pintora morta, como se o caso criminal a desafiar-me fosse, através de Xandra, a pintora, o da minha mulher... Vou sair daqui um pouco, sinto-me atordoado. Não comi nada hoje, ainda, só bebi umas cervejas, tenho de ir comer um prego a qualquer lado ou abato-me aqui diante de todos.

A minha mulher deixava-me, sob o abraço de outro. Os meus projectos de futuro descoloridos, um nó no peito a apertar, talvez chorar me aliviasse.

Diana Ross, «Pieces of ice»

Consegui sair do Fragilidades de ombros direitos, sem desarmar. Isto não é atitude de polícia, Eduardo! - censurava-me. Sentia-me num estado deplorável, até as mãos me tremiam. Fui descendo as ruelas do Bairro Alto, escolhi as mais escuras. No Chiado, subi as escadas da Igreja do Loreto. Se estivesse aberta, teria entrado. Ao fundo das escadas, mal estacionado, um carro da campanha Pintasilgo à Presidência, com o arco-íris iluminado pelo foco da lua. Uma lua cheia brilhante, desejável como o Graal a que se acolhia o movimento de mulheres lideradas pela candidata. Ia votar nela, sim. Quem, com mais razões do que eu, podia aliar-se a essa mulher que falava de sentimentos e de cultura? Mais sentido e sensível do que eu, não conheço. E quanto a cultura, estou de acordo com ela em que é anterior à economia e à política, por isso deve ser tratada como assunto fundamental. Isto discorrendo, acolhi-me ao portal da igreja, abrigando-me da chuvinha leve e fina que teimava em cair. Depois, acocorado, concordando ainda com a ministra que se propunha elevar-se a presidente da república, em que o acto político é um acto de cultura, escondi a cabeça entre os braços e pus-me a chorar. Chorar também é um acto de cultura, não será? Do rádio do carro pintado com o arco-íris saía a bem modulada voz de João David Nunes, a anunciar a próxima canção: «Pieces of ice». Então, ao som das muito sibilantes pedrinhas de gelo da Diana Ross chorei desabalada e convulsivamente, chorei até sair a pomba, chorei até o corvo sair da arca de Noé. Quando acabei, senti a noite muito mais clara, nítida e desanuviada.

Revista de Artes, Religiões e Ciências, nº 03 | Janeiro de 2010

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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