Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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PARTE II - FRAGILIDADES, LISBOA

7. Não há Gilberto, mas há Queirós, o crítico, e Pedro, outro pintor

— Você conhece um pintor chamado Gilberto? - perguntei ao barman, erguendo bem a voz. Ele ficou de shaker parado no ar:

— Quem não conhece o Gilberto? — entediou-se. — Um pinta-monos, que não tem a noção do movimento, só faz bonecos parados numa única dimensão...

Engoli em seco, nervoso. Aquilo devia ser resultado da campanha Pintasilgo, que mobilizava tudo quanto era agente cultural, desde escritores a músicos, a pintores e o diabo a quatro. A própria reinvenção da pintura devia ser obra dela, todos a queixarem-se, antes, de que a pintura tinha acabado, os pintores só faziam happenings, instalações, multimédia e performances. Ainda queriam mais pintores? Nos últimos anos tinham brotado do chão lêvedo de cultura como cogumelos. Achei melhor para o meu acesso de angústia espairecer um pouco, percorrendo os curtos corredores daquele sofrível labirinto. Não era assim tão difícil encontrar o Gilberto, mas ele não estava à vista. Não, não descobri nenhum pintor em acto, a retratar os frequentadores do bar, por isso voltei ao ponto de partida, acocorando-me ao pé do garoto pós-moderno que, por isso mesmo, por ser pós-modermo, se achava em plena crise de abandono, isolamento e solidão.

— Viste o Gilberto, o pintor? — perguntei. Os amigos, num grupo diferente, ouviam sem ouvir uma loura exuberante, que traçava a perna sobre meias pretas tecidas de flores. O puto ergueu para mim a cabeça de andorinha, cheia de caracóis, os olhos grandes e doces:

— O Gilberto estava aí há pedaço, vi-o com a pasta de desenho, ele vem cá só para trabalhar.

— Ah — suspirei. — Já dei por aí umas voltas e não está cá ninguém a desenhar...

— Se calhar foi-se embora, hoje há uma festa punk no Teatro da Revolução, deve ter ido para lá... Estou sem massa nenhuma, não me paga uma cerveja?

Chamei o empregado, pedi-lhe a bebida. O garoto abriu-se num leque de simpatia:

- O senhor é amigo do Gilberto?

— Não propriamente, queria era falar com ele.

— É um tipo porreiro, muito calmo, de poucas conversas...

— Gostas do que ele faz?

— É giro... Trabalha em série, só nestes sítios, está a ver?

— Sítios onde se bebe e dança, onde há movimento...

— Movimento!... — encolheu os ombros como quem discorda, e acrescentou: — Pois, ele desenha em série... Uma data de desenhos para cada cena... Só variantes mínimas de um assunto reduzido ao essencial, no fundo ele vem ainda da arte minimal...

— Disseram que não tem a noção do movimento nem da perspectiva...

— Ora! A perspectiva tem como efeito uma ilusão de planos em profundidade. Profundidade!Só querem profundidade, são todos uma cambada de parvos a armarem em génios, gente de ideias profundas! Não sabem nada, falam de tudo como se tivessem visto e lido e ouvido, mas basta ver a vida deles, hem? Passam aqui a noite, dormem até às quinhentas, vão jantar ao 31 da Armada, vêm para aqui passar a noite metidos nos copos! Que tempo lhes sobra para se informarem de facto do que papagueiam? — o puto excitava—se, que fazia ali se se considerava diferente dos outros?

— Achas que são frívolos?

— Quando um burro larga um relincho num jornal, depois todos os parvos sem ideias próprias desatam a repetir a mesma coisa! Eu pertenço à geração pós-moderna, nunca me senti tão isolado na merda da vida! — lágrimas verdadeiras afloram-lhe aos olhos. — «Bonecos parados num espaço sem a noção de perspectiva», foi o que escreveu o piroso do Queirós, que por acaso é um bêbado que anda por aí sempre atrás de mim! Eu já não aguento mais, sinto-me completamente só!

— O que é que tu fazes?

— Pinto, também. Que havia eu de fazer?

— Não concordas então com o que se diz do Gilberto...

— O senhor já reparou nesta gente? Estes que para aqui vêm é que são bonecos sem movimento, sem perspectivas nem dimensões! O Gilberto anda numa de desenho animado, não sei se percebe... Gajo giro, muito minimalista...

— Onde é que ele mora, sabes?

— Não faço ideia nenhuma... 

— E a pintora Xandra, conheces?

— São amigos, essa é que deve saber onde ele mora. Porque não lhe pergunta?

A sensação de angústia voltou a apertar-me o coração. Não tanto por me causar sofrimento a morte súbita da pintora. Na minha profissão, a morte é uma presença a que a gente se habitua, embora aquela não me deixasse indiferente... Simpatizara com ela, com a casa, não a conhecera mas o rosto aparecia-me em filme na lembrança, sorrindo, passando, vivendo... A imagem tornava-se-me familiar, era curioso. De um modo geral, nos casos de homicídio, o que menos interessa é a vítima. Esquecemo-nos dela, passa a objecto investigável, mas só objecto... Corpus, se tanto. Um corpo documental, analisável. Morreu, acabou! Só importa deslindar o crime para prender o criminoso. Isto feito, a sociedade sente-se segura. Com esta não era assim, sentia-me esquisito, interessado por ela, confundia com ela a minha mulher, obcecava-me um pintor que certamente nada tinha a ver com o caso... Inquieto, sinto-me inquieto com o rosto da vítima e, quando a recordo, oiço música... Oiço, são os UHF... Mas não era esta a música que tinha infiltrada na memória... —  Xandra! — chamo alto, distraído.

UHF, «Cavalos de Corrida»

— O menino pintor ergueu para mim os grandes olhos surpreendidos com aquele grito:

— É, pergunte à Xandra, ela deve saber... — assentiu ele, com sorriso de quem compreendia.

E porque não?, pensei. Porque não perguntar à morta? Desiludido, preparava-me para regressar ainda ao local do crime, quando o tal Queirós, crítico de arte, se abeirou de nós, disposto a meter conversa.

— Por amor de Deus, não me deixe aqui sozinho com ele! — implorou o garoto, agarrando-me o braço. No rosto pálido passava-lhe uma aguada de cal, afligi-me: ainda era capaz de desmaiar ali.

— Estás tão amarelito, Pedro — enterneceu-se o crítico, assentando-se no chão encostado a ele. — Sentes-te mal?

— Não, estou porreiro — murmurou, afastando-se um pouco. — Isto é da cerveja, já bebi meia dúzia delas esta noite!

— Queres vir até ao meu apartamento? Arranjo-te uns ovos, um leitinho quente... 

O puto — Pedro, como afinal se chamava — olhava para mim como náufrago à espera de tábua salvadora. Não disse nada, aguardei, até ver em que paravam as modas. Aquele Queirós, na sua solicitude interesseira, agoniava-me.

— Ia-te fazer bem, meu filho!... — insiste o homem, as palavras numa ternura mole, as barbas húmidas a roçarem os anéis do cabelo do puto.

— Não me dá jeito nenhum, desculpe! Estou à espera do Gilberto! — esquiva-se o Pedro, à míngua de melhor expediente de desengate.

— Mas que Gilberto!... — azeda o outro, cada vez mais colado ao garoto. — Tenho em casa uma coisa capaz de pôr um morto em pé, anda daí...

Felizmente a música subia ao tecto, nada do que o Pedro respondeu ao Queirós foi percebido. Era um LP antigo, já dos anos 70, mas os Pink Floyd estão sempre na moda...

Pink Floyd, «Anoter brick in the wall»

O rapaz esquivava-se mal aos pretextos do Queirós para lhe passar as mãos por cima. Cambaleou ao tentar levantar-se, sacudia-se do contacto com irritação:

— Largue-me, não preciso de muletas! — estoirou. Eu já não aguento mais, pertenço à geração pós-moderna, nunca me senti tão só na minha vida!

— Por isso mesmo — acudiu logo o Queirós. — Anda, que eu levo-te para casa!

Resolvi interferir, afinal o rapaz tinha-me pedido ajuda. Da maneira como os olhos se lhe nublavam, não tardava ainda ali vomitava a meia dúzia de cervejas que dizia ter bebido.

— Eu levo-o a casa, dá-me licença? — interrompi, erguendo o puto à força de pulso.

— Mas o que é isto? — chateou-se o crítico. — Leva-o agora a casal Não vê que está a cair de bêbado? — e as barbas do tipo azedavam. — Moro aqui ao lado, é só um saltinho!

— Eu levo-o a casa, já disse! — afastando o tipo, saí porta fora com o puto, a bem dizer debaixo do braço.

A elefantina segurança desviou diplomaticamente o olhar ao abrir a porta.

Na rua, uma vergasta de vento na cara a alertar-nos.

— Isto é uma tortura, não posso vir aqui que o gajo mete-se logo comigo, e a mim dá-me raiva, ando sempre a fugir dele...

Podia ter bebido até uma dúzia de cervejas, mas o Pedro não estava bêbado.

Revista de Artes, Religiões e Ciências, nº 03 | Janeiro de 2010

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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