Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX NÚMERO 05|ABRIL DE 2010

NÚMERO 05

Abril 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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MARIA ESTELA GUEDES

Tango Sebastião

 

 

 

 

Britiande . 2010
© Maria Estela Guedes

1. Personagens, etc.

2. Sinopse

Cena 1
Cena 2
Cena 3
Cena 4
Cena 5
Cena 6
Cena 7 e última

CENA 2

A Máscara e Yukio Mishima sobem ao palco pelo lado da plateia. Ele  vai à cena buscar o genuflexório; a Máscara senta-se nele. Correm parcialmente o pano, deixando à vista o retrato de D. Sebastião. Yukio Mishima senta-se no chão na posição do lótus e aguarda.

Máscara – Irritou-me um bocado a conversa que ouvimos agora na Escola de Teatro. Também lá estavas, não ouviste?

Yukio Mishima – Desculpa, não dei por nada, não prestei atenção... Estava concentrado no filme que lá passaram, de Paul Schrader, «Mishima - Uma vida em quatro capítulos»...

Máscara – Não gostei muito, a vida de Yukio Mishima é um filme de terror... Bom, mas imagina que no intervalo andava lá um toleirão a falar com a mulher, decerto sobre um parente, que todos sabiam ser homossexual, mas não tinha coragem para se assumir... (Tira e põe a máscara diante da cara como uma ventoinha). 

Yukio Mishima – Oh!... Que lindo verbo, vamos lá a conjugar: assume tu, assumam eles e elas, assumi vós… (Troça do verbo «assumir» em todas as suas formas). 

Máscara – E tu? Não assumes? 

Yukio Mishima – Eu? Mas tu conheces-me assim tão bem?  

Máscara – Tenho-te visto por lá, conheço-te de vista... Assumes ou não? 

Yukio Mishima – Claro, a sumo, a jiu-jitsu... Eu pratiquei ginástica, karatê e kandô... Olha que até no boxe andei!... (Em segredo) No boxe fui uma desgraça, não ganhei um desafio...

Máscara – Gozas comigo, se calhar com a verdade... 

Yukio Mishima – Minha amiga, para sobreviver na minha família patriarcal, com um pai militar e machista, vivi sempre atrás da máscara… No Japão antigo, ninguém incomodava os homossexuais. Nem as religiões se pronunciavam sobre o assunto, era coisa natural e corrente. Agora, infelizmente, por influência dos povos ocidentais, é que começou a ser mal vista.  

Máscara – Então os budistas não perturbam os homossexuais?! 

Yukio Mishima – Não, os homossexuais não eram perseguidos. A menos que não tivessem descendência! Olha, é assim: nas sociedades possidentes, a raiz da discriminação relaciona-se com a propriedade que se transmite de pais para filhos... Quando não somos elos nessa cadeia de transmissão de genes e bens materiais, corremos muitos perigos... A maioria só aceita a norma, e a norma em que assenta a sobrevivência geral das espécies é a reprodução. Reprodução biológica, reprodução de modelos de vida, reprodução de modelos de pensar, reprodução de modelos estéticos... Os homossexuais, repara: não fazem parte desse sistema, pelo contrário... Ainda por cima, a sua sensibilidade é geralmente muito refinada, talvez por serem muito hostilizados. Ora as pessoas hipersensíveis costumam ser artistas. E o que são os artistas, hem? Os artistas são criadores... 

Máscara – Reprodutores e criadores...

Yukio Mishima – Então, já vês: os homossexuais não reproduzem a cadeia, por isso a tendência geral, com casamento ou sem casamento, com direito ou sem direito à adopção, a tendência geral é para os excluir ou mesmo para os exterminar... 

Máscara – Exterminar é um exagero!... Não, isso depende das culturas!.. Aqui, em Portugal, ainda existe muita hostilidade, e sobretudo por parte dos homens. Os homens portugueses são machistas, os modelos não-machistas desautorizam-nos. Diante do homossexual, o pavão fica sem motivos para abrir a cauda...   

Yukio Mishima – O meu pai era assim, um pavão... Diz-me então se o homossexual deve assumir perante todos que não é um reprodutor, arriscando-se a ficar sem cabeça, ou se não será mais prudente socorrer-se da máscara...   

Máscara – Logo vi… Assumir a homossexualidade?! Para quê? Para nos lançarem à fogueira, para nos mandarem para as câmaras de gás, para nos enclausurarem nos hospitais psiquiátricos, para nos atirarem pedras, para nos fecharem as portas das suas casas, para nos deserdarem, para nos arremessarem graçolas parvas? Essa cena do casamento, que já existe em vários países, não nos vai poupar. A única coisa que a Lei pode fazer é estabelecer que é crime discriminar e molestar os homossexuais, mas não vai mudar a cultura… Eu só quero ver, agora os humoristas ficaram foi com mais um tema para as suas chacotas na comédia sempre-em-pé… Apostamos? 

Yukio Mishima – (Não entra nesse jogo) Eu? Apostar?...  

Máscara – Gente ignorante e estúpida! Julgarão que se trata de alguma mania, que a homossexualidade é uma jaqueta que se pode vestir ou despir quando convém? Os homossexuais têm sido tão maltratados como as mulheres, os escravos, os judeus!... Como os negros, e outros, eu sei lá…  

Yukio Mishima – Liberdade, Igualdade e Fraternidade! Nesta tríade de valores, o direito à homossexualidade é a última grande causa humana a defender… (Pausa, lembra-se) A outra é a do imperador… 

Máscara – (Mostra o retrato de D. Sebastião) Concordo contigo, no tempo de D. Sebastião, Portugal era um grande império: ia de Oriente a Ocidente e de Norte a Sul…  

Yukio Mishima – Falava do imperador do Japão… 

Máscara – Essa agora, o imperador do Japão?!... Mas que imperador do Japão?! 

Yukio Mishima – Hirohito… 

Máscara (Ameaça bater-lhe com a máscara) – Meu caro, não seja tão Australopithecus, esse nacionalismo não lhe assenta nada bem… Olhe que para acabar com os ataques do Japão, foi estreado na Terra o armamento nuclear… (Para a plateia, em segredo) O Japão de Hirohito fazia parte do Eixo, com a Alemanha nazi e a Itália fascista!... Até Timor atacaram... Ah, não foi por causa dos alemães que Portugal entrou na guerra, foi por causa dos japoneses!... Os japoneses invadiram a ilha, massacraram a população, violaram as mulheres... (Bate-lhe com a máscara, ele foge). 

Yukio Mishima – Sou um mártir… 

Máscara (Zangada) – Você é um actor, isso é que é! (Muda de conversa e fala com o público) Desde que vingou no Ocidente a cultura católica, nunca mais a homossexualidade pôde ser normalmente vivida! Pecado mortal, dizem os padres. Não é que tal coisa me incomode, porque o discurso da Igreja é estranho ao nosso corpo e à nossa linguagem…  

Yukio Mishima – Bem, este assunto ultrapassa a questão católica... No meu país, embora a religião não condene os homossexuais, há quem sofra muito... Se o meu pai soubesse!... Reprimia-me, reprimia-me tanto!... Não imaginas, era uma tortura constante: tudo o que eu fazia era mal feito, nada do que me saísse das mãos o contentava, quando me dirigia a palavra era só para me deitar abaixo! Vivi num stress contínuo... Foi por causa do meu pai que comecei a usar máscara. E casei, e tive dois filhos, e pratiquei as artes marciais... Sou um bom samurai… Tradições fortes, valiosas, infelizmente perdidas... Os samurais viviam para a honra e para as coisas espirituais, e desprezavam o dinheiro...

Máscara (Para a plateia) – A tradição deve ser perpetuada se for boa em si, agora se é tradição o sofrimento infligido a si mesmo ou a outrem, vade retro... Abaixo a tradição! Viva a modernidade!

Yukio Mishima - Já a minha avó pertencia a uma família de samurais. Enlouqueceu, não me deixava conviver com outras crianças… A única memória boa que conservo dela é a de me ter iniciado no kabuki...

Máscara – Kabuki?!...

Yukio Mishima – Teatro nô, o teatro tradicional japonês... Eu mostro...

 

(Número de teatro kabuki)

 

Máscara – És um homem do teatro, isso já percebi eu... 

Yukio Mishima - Só aos doze anos fui viver com os meus pais... Sofri tanto com a minha avó! Sentia-me prisioneiro dela, e tão abandonado que só pensava na morte... Queria morrer para ser livre... Depois quis morrer por amar a morte... E finalmente morri para contestar a mudança do Japão no pós-guerra. Confesso: suicidei-me para mostrar ao mundo que morria comigo a tradição, o Japão dos samurais... 

Máscara – Compreendo quando dizes que sempre usaste máscara… Mas nós vivemos no hemisfério Norte, amigo! A Ocidente, na Europa. Um continente cristão. A tua história não obsta a que a moralidade do discurso católico tenha morrido e os conventos estejam cheios de gays... 

Yukio Mishima – E está morta a discriminação, a injúria? Nem o assassínio viu ainda o fim… 

Máscara – Os nomes que nos chamam… Não me refiro a gay nem a lésbica, sim aos outros…

Yukio Mishima – Nomes?!... O nome é a minha máscara... Os insultos são palavras iguais à outras, não têm força nelas mesmas. A sua eficácia vem-lhes da intenção de quem as pronuncia… A palavra «morte» não mata, a menos que seja estampada em documento judicial que exija execução de alguém… Bem, eventualmente, pode alguém morrer de pânico por ouvir vozes, sei lá…  

Máscara – Já não era a primeira vez que alguém morria de comoção por ouvir certas palavras… Olha, um conhecido meu, há anos, ganhou o primeiro prémio da lotaria. Quando lho anunciaram, não resistiu, deu-lhe uma síncope cardíaca… 

Yukio Mishima (Dirige-se ao público) – Sabíeis que morre uma pessoa por dia em todo o mundo por ser homossexual? Não, isto não são contas da Alemanha nazi nem da Inquisição, isto acontece agora, em pleno século XXI, um pouco por toda a parte… Aliás, vamos ser mais rigorosos, eu tenho aqui um manifestozinho… (Mostra o documento à Máscara e à plateia): 

Máscara – Oh, a «Proclamação de São Sebastião, patrono dos gays» editada pelos homossexuais do Brasil… 

Yukio Mishima (Dirige-se ao público) – Vou ler só três parágrafos, só umas linhas poucas, para sabermos do que estamos a falar. 

(Faz um discurso) 

«Pedimos a São Sebastião que seja nosso advogado para a obtenção de três graças especiais:

1] O fim da violência anti-homossexual: as mesmas dores que o mártir São Sebastião sentiu ao ter seu corpo vazado pelas flechas, estas mesmas dores continuam a ferir ainda hoje os homossexuais: a cada três dias um gay, travesti ou lésbica, é barbaramente assassinado, vítima da homofobia...» 

Máscara –  Que horror!... 

Yukio Mishima - «2] Que a Igreja Católica e todas as religiões peçam perdão aos homossexuais pela perseguição, fogueira, inquisição e intolerância com que ainda hoje tratam os homossexuais; que aceitem e abençoem o amor homossexual, pois "onde há amor, Deus aí está"; que instaurem pastoral específica para os homossexuais, pois também somos filhos de Deus e Templos do Espírito Santo;» 

Máscara (Desconfiada) –  Isso, agora… Pastoral específica… Que os conventos estão cheios de gays, lá isso é verdade, mas não vejo a Igreja assumir o facto… (O verbo «assumir» é sempre objecto de ironia) Assumir os crimes de abuso sexual cometidos pelos padres contra crianças e jovens que têm à sua guarda, bem, lá vai assumindo… Ainda agora, com aqueles frades irlandeses… Mas ó amigo, lê mais, quero saber mais… Que querem mais ainda os homossexuais brasileiros? 

Yukio Mishima - «3] Que São Sebastião, tradicional patrono contra a peste, inspire os cientistas e pesquisadores a encontrar rapidamente a cura da Aids (SIDA, explica), afastando para sempre o fantasma desta epidemia de nossa comunidade, ajudando aos seropositivos e doentes de Aids a vencer a dor e a ter vida longa e saudável.

Ao consagrar esta igreja - a igreja de S. Sebastião dos Beneditinos da Bahia (acrescenta) - como Santuário Homossexual do Brasil, conclamamos a todos os gays, lésbicas e travestis do Brasil e do Mundo que não deixem morrer esta semente de esperança que hoje aqui plantamos, e que nos próximos anos venham celebrar nosso orgulho e esperança aos pés de nosso patrono, o glorioso São Sebastião, padroeiro dos homossexuais.»

Máscara -  (Para a plateia) Ao longo da História, quantos homossexuais não foram vítimas de perseguição? Oh, o próprio S. Sebastião, meus caros, perguntai: qual a causa da sua condenação à morte?  

Yukio Mishima – Ele não foi condenado por ser homossexual, calma aí… 

Máscara - Não, ele não foi condenado por ser homossexual, mas, se não fosse homossexual, hoje não teríamos nós história nenhuma para contar… Sabeis quem era S. Sebastião?  Quereis que vos conte a sua história? 

Yukio Mishima – Eu conto, eu conto, conheço a história muito bem (Para a plateia, em segredo) Também eu sou S. Sebastião...  

(Levanta-se e entra em cena, sentando-se sob o seu retrato de S. Sebastião. A Máscara corre o pano parcialmente).

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
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