RUY VENTURA:::
Palavras que fazem ver

Projectos de investigação diferentes, que nos últimos tempos me têm ocupado, levaram-me ao encontro de vozes e pensamentos diversos, mas confluentes. Têm todos eles um centro – a percepção das relações sociais e políticas em tempos de crise e de desigualdade entre os homens.

Há cerca de dois mil anos, alguém escreveu numa carta: “[…] ricos, chorai em altos gritos por causa das desgraças que virão sobre vós. As vossas riquezas estão podres, e as vossas vestes comidas pela traça. […] Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos apetites… para o dia da matança!

No século XII, houve por sua vez quem dissesse sem hesitações nem medos: “Os ricos e poderosos roubam aos pobres os seus haveres, adquiridos com suor e lágrimas. Ainda por cima, chamam-lhes seus vilãos, quando eles é que são vilãos do diabo. […] O rico deste mundo perverte a justiça, roubando os pobres ou não lhes dando o que é seu.” E acrescenta com igual ousadia e firmeza: “É sacrilégio dar a pertença dos pobres a quem o não é. Se dás a um parente, deves dar não por ser parente mas por ser pobre. […] Não dês, portanto, sangue ao sangue, mas dá ao peregrino e ao pobre.

Já muito mais perto de nós, um dos gigantes da nossa literatura portuguesa e da literatura de qualquer parte do mundo afirmou: “[…] um novo e inesperado actor calcou o tablado. […] Ao pé dele tudo é mesquinho: homens de estado, negociações, guerreiros e príncipes. Salvou-nos. E logo que nos salvou sumiu-se na mesma estúpida resignação […]. Mas nem tudo se perde: alguma coisa de amargo – dúvida ou cólera – ficou na consciência colectiva, que há-de desentranhar-se no futuro em novos gritos. Esperemos o que a noite vai gerando…

Acrescento a estas erupções verbais, tão oportunas, as palavras ditas por um homem do povo mais humilde, ou seja, mais próximo do húmus, da terra fértil: “Quem trabalha e mata a fome / Não come o pão de ninguém; / Mas quem não trabalha e come, / Come sempre o pão de alguém!” “Entre grandes e pequenos / Ficávamos quase iguais, / Dando a uns um pouco menos / E a outros um pouco mais.” “Vós que lá do vosso império / Prometeis um mundo novo, / Calai-vos, que pode o povo / Q’rer um mundo novo a sério.

Que interessa que estes textos tenham sido escritos em momentos distintos da História da Humanidade? É importante sabermos que eles saíram da mão e/ou do pensamento de Tiago-o-Justo, Santo António de Lisboa, Raul Brandão ou António Aleixo? Parece-me que não. Importa a sua justiça, a clarividência que nos dão e a mudança de atitudes que possam propor ou proporcionar. Assim eles fiquem na nossa memória, na memória de quem os lê, e empurrem para aquilo que interessa nestes tempos conturbados, de transição: a mudança e o avanço.

 

Ruy Ventura

 

RUY VENTURA (Portalegre, 1973) .
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