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ANTÓNIO RAMOS ROSA

Semelhante à imóvel
transparência
à inesgotável face
à pedra larga onde o olhar repousa

Água sombra e a figura
azul quase um jardim por sob a sombra
a iminência viva aérea
de uma palavra suspensa
na folhagem

Semelhante ao disperso ao ínfimo
chama-se agora aqui o sono da erva
a ligeireza livre
a nuvem sobre a página

In: A Nuvem sobre a Página, 1978

As palavras

Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo
As palavras identificam-se com o asfalto negro
o tropel das nuvens
a espessura azul das árvores acesas pelos faróis
o rumor verde

As palavras saem de um ferida exangue
de teclas de metal fresco
de caminhos e sombras
da vertigem de ser só um deserto
de armas de gume branco

Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos
e há palavras como giestas vivas

Matrizes primordiais matéria habitada
forma indizível num rectângulo de argila
quem alimenta este silêncio senão o gosto de
colocar pedra sobre pedra até à oblíqua exactidão?

As palavras vêm de lugares fragmentários
de uma disseminação de iniciais
de magmas respirados
de odor de gérmen de olhos

As palavras podem formar uma escrita nativa
de corpos claros
Que são as palavras? Imprecisas armas
em praias concêntricas
torres de sílex e de cal
aves insólitas

As palavras são travessias brancas faces
giratórias
elas permitem a ascensão das formas
elevam-se estrato após estrato
ou voam em diagonal
até à cúpula diáfana

As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado

Que enfrentam as palavras? O espelho
da noite a sua impossível
elipse
Saem da noite despedaçadas feridas
e são signos do acaso pedras de sol e sal
a da sua língua nascem estrelas trituradas

In: Gravitações, 1984
Um astro

Ouve a longa incoerência da palavra e a memória
do sangue que se apaga.Ouve a terra taciturna.
Tudo é furtivo e as sombras não acolhem.Nenhum jardim
de segredos.Nenhuma pátria entre as ervas e a areia.
Onde é que nasce a sombra e a claridade?

Eis as vertentes da terra árida e negra.Quem
reconhece o equilíbrio das evidências serenas?
Estas palavras têm o odor de portas enterradas.
Como dominar a desmesura da ausência e a vertigem?
Como reunir o obscuro em palavras evidentes?

Escuta,escuta a longa incoerência da terra
e da palavra.Ao longo da distância
murmura a perfeição monótona de um mar.
Num pudor de esquecimento um astro se aveluda
em denso azul na corola do silêncio.

In: Volante Verde, 1986
 

Tal como antigamente

Tal como antigamente tal como agora
essa estrela esse muro
esse lento
esse morto
sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair