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José Augusto Mourão (UNL-DCC)
EM TORNO DE UM TEXTO TEÓRICO DE
A. RAMOS ROSA

Conclusão

 

Nomear o que ainda não tem nome, dizer o inesperado, produzir o real, tal parece ser a tarefa reservada à escrita moderna. Nesta nomeação, ao contrário da fabricação de um instrumento, é a realidade que é relegada, dado que a linguagem não fala senão a si própria (autotélica). Com o risco também de, ao abandonar as defesas e as marcas de fazedores de nomes (artistas), nos aproximarmos de uma modalidade de enunciação psicótica. A escrita moderna é de facto substancialmente uma experiência dos limites (Bataille): limite da língua, limite da identidade subjectiva, limite da sociabilidade.

Toda a matéria é matéria primeira. Isto implica que o seu conceito só aparece em função de uma ordem de produção - o que todos os "materialistas" sabem. A metéria não é senao força produtiva. Mas a produção não tem nada de "materialista" - nem de idealista, de resto. É uma ordem e um código (1). A escrita moderna, na perspectiva de Ramos Rosa, como na de outros teóricos da literatura, é trabalho essencialmente "diabólico", na medida em que significa a desagregação do código e do logos. Expressão sem ideias feitas por trás. Revolução do significante sobre si próprio. É deste lugar sem rerstos, aparentemente sem sujeito, desta anulação centrífuga, que se produz a redistribuição de uma fracção da língua, bem como a infinidade de sentidos.

Bloco éo significante que organiza tudo neste texto - em termos de combate a partir do silêncio contra ele: energia, e em termos de trabalho da significância (produtividade) contra a tendência para a estaticidade do espelho que carreia o signo. Bloco é aqui o que Barthes chamava palavra do tipo mana (significante flutuante), operador de energia no interior do texto (2). Significante porque escapa ao horizonte e à finalidade do significado e se torna puro material, disponível para outro trabalho - material "elementar" disponível para "encaixar" o processo primário, e para a circulação anagramática do poema. Bloco não esconde nem recalca nada - o que caracteriza é a conflagração de uma qualquer finalidade ou valor fora do circuito de uma economia libidinal ou política.

Será a teoria do texto do nosso autor uma teoria materialista da linguagem, onde as palavras não exprimem o real, mas o são, na confluência do ser e do dizer? Não me parece que o seja: o poético não é de modo algum a ressurreição da palavra como coisa, mas sim a sua volatização - exterminação da linguagem como discurso e como materialidade também. A palavra não adere nunca cegamente áquilo que designa porque não há coalescência possível da coisa e da palavra senão em psicose (3). Há porém traços que ligam Ramos Rosa e este seu discurso em particular à maneira do discurso sofista: como um laço que lança, fazendo-se passar por aspirante à adequação ser-logos . Crátilo pretende que a relação entre as palavras e as coisas é natural ( fusei ), motivo pelo qual quem conhece as palavras conhece também as coisas. A função poética representa o esforço para compensar, pelo menos ilusoriamente, a arbitrariedade do signo, quer dizer, para motivar a linguagem. Desta adequação significada, o seu significante retém apenas o jogo ou o cálculo que se tornam no branco do papel incisões (estilo), polivalência.

Como Crátilo, preferirá Ramos Rosa a motivação mimética à convenção? Como Crátilo ainda, acredita ele na possibilidade de uma justeza das palavras, quer dizer, na capacidade mimética dos elementos da linguagem? Ambígua, posição cratiliana: as palavras são "instrumentos" (Crátilo, 388 BC), não para conhecer. E noutra parte, quando se sabem as palavras, sabem-se também as coisas". O nosso autor mantém-se mais longe de Hermógenes e da sua teoria do uso da linguagem: as palavras-instrumentos, sim, com a condição de que por "instrumentos" se entenda agente e objecto da produção da própria linguagem ao serviço do pensamento (4), e mais perto de Crátilo, sem ter contudo separado a mimese das referências "prático-poiéticas". O cratilismo secundário caracteriza o escritor que procura instaurar uma relação mimética, icónica, entre os elementos fónicos e gráficos do significante, e o significado e a realidade, por outro lado. Bloco foi o significante escolhido simultaneamente para definir a opacidade do texto, resultado da semiose introversiva, do automorfismo e da autotelicidade, e a função poética. Valéry acreditava que o poder dos versos reside numa harmonia indefinível entre o que eles dizem e o que eles são (Oeuvres , t. II, p. 637), visando assim o problema da analogia ou da identidade do discurso poético com o discurso mágico.

Será então Ramos Rosa um sonhador de anagramas e sofista, nostálgico de uma palavra - "virtude", eficaz, e de uma verdade arcaica que Aristóteles é o primeiro a denunciar, de uma coalescência da palavra e da coisa, á procura de uma transparência da linguagen? Ou não sabe ele que a transparência é perigosa, porque é exactamente o contrário da autonomia: o enunciado poético é mais autónomo, menos sujeito ao seu conteúdo, portanto menos transparente e mais perceptível como objecto? (5), Ou reflectirá antes a experiência da linguagem (ser-logos) com a diabolia, enquanto sublinha o impossível de um discurso da escrita, portanto?

(1) J. Baudrillard, op. cit., p. 338.

(2) Roland Barthes, Roland Barthes par Roland Barthes , Paris , Seuil, 1975, p. 133.

(3) Denis Vasse, Problematique du signe et problematique du signifiant, in Documents do Centro Tomás Moro , L´Arbresle, 1976.

(4) Antonia Soulez, art. cit., p. 76.

(5) G. Genette, Mimologiques. Voyage en Cratylie, Paris, Seuil. 1976, p. 306.