JOSÉ GERALDO NERES
A morte usava vendas nos olhos

I

A morte usava vendas nos olhos. Grande voz domadora dos desertos – meu coração – combatia os anjos. Era o menino em seu cavalo branco. Atravessava os espelhos; andava descalço por entre os lotes de almas perfuradas; bebia o sangue das sombras com um cálice retirado da voz de um corvo, do leito profundo de um deus esquecido. A morte usava os olhos desse deus, fazia dele o seu lar. Corria pelas veias como fumaça e cruzava a cidade e suas torres de sangue; mercadora de milagres.

O dever nos becos e vielas, um anjo traz uma seringa. Naquela prisão de vidro eles viajam com outros deuses. Descobrem o útero do tempo. Encontram o poeta que habita o abismo.

II

Maria não consegue mais lembrar do rosto de sua mãe. Quando alguém pergunta, dá sempre a mesma resposta: - Minha mãe é a rua!

Maria, doze anos. Carrega uma boneca, presente de Natal. Mas a miséria não dá trégua; a fome é um rosto antigo, dentro de Maria. A virgindade tem seu valor. O suor daquele homem corre pelo corpo. O sol é um punhal. Refaz seu rosto. Corta a alma. O choro, o grito, e nenhum anjo para escutar. Nenhuma lágrima.

Hoje ela almoçou!

José usa a boneca para limpá-la. Senta ao seu lado. Chora.

– Que foi? Por que está chorando? Guardei um pouco de comida para você.

III

Um minuto. A encruzilhada. Árvore de galhos retorcidos e frutos soltos. Aos pés: pedaços de pão, um espelho, uma cuia com água, um novelo de lã, uma vitrola. Uma criança com um maço de cartas nas mãos. Ela cobre o espelho com pequenos pedaços de pão. Apanha uma carta e a cuia. Olha para os dois objetos. Mergulha a carta. Começa a movimentar-se de um lado a outro. Gira, gira. Retira a sombra dentro da sombra, arrasta o silêncio para dentro da cuia. Eleva as mãos; joga-os para o alto. A água, cai no novelo de lã. Cada milímetro do novelo, tece um outro labirinto. Com um rosário de carnes a criança colhe meninos sem sombras.

IV

Está surgindo um silêncio novo a cada dia, e sempre surge esse abismo que ronda as sombras brancas do papel. O tiro de um anjo sádico quebrou minhas asas. –Mãe; hoje não escutei a sua benção; sinto uma risada cortar o ar.

No leito profundo de um deus esquecido a morte usava vendas nos olhos.