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JOÃO RASTEIRO

CORSINO FORTES e JOÃO CABRAL de MELO NETO
ou OS ARTÍFICES da PALAVRA

INDEX

Introdução
Corsino Fortes: poesia da identidade
A ilha: recriação de Cabo Verde na recriação da palavra
O “Pedreiro da palavra”
João Cabral: poesia da busca
O Sertão: poesia escrita na pedra
O “O engenheiro da palavra”
Semelhanças e diferenças no fazer poético
Conclusão
Notas
Bibliografia

ANTOLOGIA “OS ARTÍFICES DA PALAVRA”
Corsino Fortes
João Cabral de Melo Neto

O "engenheiro da palavra"

Quando veio a público, a poesia de João Cabral “chocou” de alguma forma a poesia brasileira. A secura de linguagem, o rigor construtivo do poeta que não acreditava em inspiração, colocava em “cheque” toda a tradição anterior da poesia brasileira. Acusavam-no de ser um poeta sem alma, que fazia poemas frios, racionalistas, medidos a fita métrica e sem alma e coração. Conhecido como o “engenheiro” da poesia e/ou da palavra, João Cabral apresenta sobretudo uma inquietação formal, engendrando a “poesia da palavra sobre a palavra”. Como um engenheiro, João Cabral constrói um edifício de vocábulos. Sendo assumidamente, anti-sentimental e anti-lírico (embora numa determinada fase de escrita, o lirismo, mesmo se contido, aforasse), João Cabral compõe uma poesia pensada, racional, empregando uma linguagem elíptica e concisa. Repare-se nos seguintes versos:

“As nuvens”

As nuvens são cabelos

crescendo como rios

são gestos brancos

da cantera muda,

(...)

São a morte (a espera da)

atrás dos olhos fechados

a medicina, branca!

Nos dias brancos.

Não há contudo em João Cabral, o “catalogado” não lírico, mas, um lirismo às avessas, como referiu Manoel Ricardo Lima. João Cabral apenas tenta que a poesia “dance um artefacto rigoroso de busca”. Pensar, tal como Mandrion, a poesia em linhas rectas, referia João Cabral. Poeta para quem “o trabalho da poesia é um trabalho intelectual, possui um vocabulário que é essencialmente referencial e não metafórico”, chegou a encarar como “preconceito”, a ideia de que a poesia seja a “transplantação metafórica da realidade”. Assim, o horror que sente perante a emoção e/ou sentimentos, fazem-no escrever poesia, como um “trabalho intelectual”, a exemplo do “engenheiro” que constrói uma casa, através ou suportado, por uma linguagem lógica e matemática. Daí, a sua admiração pela poesia concreta (rigor, falta de lirismo, ausência de imagens abstractas, etc). O crítico Antônio Houaiss escreveu: (16)”Na primeira fase, poesia é sono e sonho, e também alucinação, e também ludismo, jogo gratuito de palavras, se possíveis belas; na segunda fase, “O engenheiro”, poesia é construção, rígida, de compasso e régua de cálculo, em que não há revelação, nem inspiração, nem encantamento, mas raciocínio”. Ou seja, o “sonho” deixa de ser uma alucinação, para gradualmente se condensar e materializar, na forma lógica de pensamento de um mundo justo. Como refere João Cabral, no poema “O engenheiro”, onde se assiste a uma reflexão poética em versos livres, sobre o ofício da engenharia (e da arquitectura) como organização do espaço, coordenação de elementos concretos e integração com a natureza e o mundo, de forma lógica, mas justa. É interessante ver como se aproximam engenheiro e poeta, ambos construtores de um mundo que se quer melhor. Ambos sonhando. João Cabral sonhando, mas, de forma racional!

A luz, o sol, o ar livre

envolvem o sonho do engenheiro.

O engenheiro sonha coisas claras:

Superfícies, tênis, um copo de água.

 

O lápis, o esquadro, o papel;

o desenho, o projecto, o número:

o engenheiro pensa o mundo justo,

mundo que nenhum véu encobre.

(...)

A água, o vento, a claridade,

de um lado o rio, no alto as nuvens,

situavam na natureza o edifício

crescendo de suas forças simples.

 Aliás, como o próprio referiu a Alfredo Bosi, nunca houve um poema que tivesse escrito (mesmo os da fase inicial), que conseguisse vingar na sua primeira versão. Com ele não existia a possibilidade de poesia espontânea. É curioso que referindo-se aos autores e artistas que teriam exercido acentuada influência sobre a sua poesia e/ou obra, afirmou, que embora tenha sido influenciado por praticamente todos os autores que leu, a principal influência veio do arquitecto Lincoln Pizzi, que fora também pintor, e que era um defensor acérrimo do cubismo. Sendo uma poesia, que muitas vezes é espacial, de nítida delimitação geográfica, na poesia de João Cabral, vemos contudo, nessa poesia, através de uma dimensão concreta, o que o poeta vê, ou nos quer mostrar. Repare-se no poema “A moça e o trem”, do livro “O engenheiro”, onde o poeta através da imagem do trem, constrói a comparação com o tempo: “o tempo é tanto que se pode ouvir”/”o tempo é tanto que se deixa ver”.  

O trem de ferro

passa no campo

entre telégrafos.

Sem poder fugir

sem poder voar

sem poder sonhar

sem poder ser telégrafo.

 

A moça na janela

vê o trem correr

ouve o tempo passar.

(...)

Cresce o oculto

elástico dos gestos:

a moça na janela

vê a planta crescer

sente a terra rodar:

que o tempo é tanto

que se deixa ver.

 

(17) ”Construção, precisão, lucidez, intelecto, é o projecto poético de João Cabral, que se torna mais explícito, a partir da publicação do livro “O engenheiro”, que é dominado, de facto, por uma poesia e um estrito senso de composição e linguagem, que faz justiça ao título do livro”. Repare-se no poema “A bailarina”, onde João Cabral, procura a apreensão precisa de certos gestos e figuras, estabelecendo uma espécie de roteiro de aprendizagem, para a sua poesia e/ou linguagem.  

A bailarina feita

de borracha e pássaro

dança no pavimento

anterior do sonho.

(...)

Entre monstros feitos

a tinta de escrever,

a bailarina feita

de borracha e pássaro.  

Da diária e lenta

borracha que mastigo.

Do insecto ou pássaro

Que não sei caçar.

 Assim, nesta geometria lógica de palavras, o que ressalta, é, sem dúvida, a vinculação qualificativa para bailarina (borracha, pássaro), a partir do uso do verbo que a estabelece, ou seja, “fazer”. Sem ser “dada”, mas “feita”, a bailarina e os seus gestos, servem para a definição do próprio gesto poético, num longo e preciso itinerário (de nítida delimitação geográfica) textual-coreográfico. Alfredo Bosi resume a poesia de João Cabral, dizendo: (18)”Sua obra desvenda uma nova dimensão ao despir o poema de traços supérfluos e cadências sentimentais”. Poeta do rigor, não existe na sua extraordinária obra, “o livro mais importante”, mas sim um conjunto de poemas fundamentais da poesia em língua portuguesa. João Cabral é um poeta racionalista que mede e pondera todas as palavras, num ideal de simetria que só pode ser atingido através de um trabalho imenso e rigoroso de linguagem poética. Um trabalho constante de depuração extrema. Nos versos seguintes, define o que é(ou deverá ser) a poesia e/ou o poema, para si e para os poetas em geral:

Saio do meu poema

como quem lava as mãos

(...)

Esta folha branca

me proscreve o sonho

me incita ao verso

nítido e preciso.

 Todo este processo através de uma linguagem tão despojada e austera, tão pouco “teatral” no sentido vulgar da palavra. Sem nada de oratório e verbalista, geralmente a poesia de João Cabral tem uma efectiva força dramática. O que nela possa haver de cerebral é contrabalançada por uma extrema sensibilidade, quer ao nível das coisas em geral, quer ao nível da escolha das palavras e vocabulário, com que exprime essas mesmas coisas. E se ele é um poeta que na sua poesia, não exerce “manifesto” para a comunidade, dá-nos contudo, um testemunho íntimo e íntegro da condição humana, através de um profundo sentimento de reivindicação da dignidade humana, neste espaço global de “pedras e palavras”. O poema “O mar e o canavial”, que João Cabral dedica a outro grande poeta, Manuel Bandeira, como uma espécie de “antiLIRA”, é a imagem fiel da sua poesia, da sua ambição de poesia. Aqui, o poeta aprofunda a aproximação entre canavial e mar, mostrando o que um ensina ao outro, através das suas diferenças e semelhanças, numa dialéctica entre a poesia e a realidade do mundo, entre a poesia e o poema, entre a palavra e a linguagem, entre o pensar e o fazer.

O que o mar sim aprende do canavial:

a elocução horizontal de seu verso;

(...)

O que o canavial sim ensina ao mar:

a elocução horizontal de seu verso;

a geórgica de cordel , ininterrupta,

narrada em voz e silêncios paralelos.  

O que o mar não ensina ao canavial:

a veemência passional da preamar ;

a mão-de-pilão das ondas na areia,

moída e miúda, pilada do que pilar.

O que o canavial não ensina ao mar:

o desmedido do derramar-se da cana;

o comedimento do latifúndio do mar,

que menos lastradamente se derrama.

 A poesia de João Cabral é assim, um poesia mais ligada ao cálculo e ao raciocínio, construindo como um “engenheiro”, o poema, palavra sobre palavra. Toda a evolução da sua poesia e/ou obra, foi uma gradual conquista de mais e mais controle sobre o fenómeno poético. Como ele mesmo referiu, é um poeta intelectual, construtor e/ou construtivista, “artífice”, visual e espacial, etc, e não lírico, emotivo, auditivo e da facilidade. Como nos diz , no longo poema “Antiode”:

Poesia, te escrevia:

flor! conhecendo

que és fezes. Fezes

como qualquer,

(...)

Flor é a palavra

flor, verso inscrito

no verso, como as

manhãs no tempo.

Vidente, numa acepção intensa e nova da palavra, como refere Régis Bonvicino, para João Cabral, (19)”escrever poemas, era um acto de escrever, de distinguir, de presenciar o acto de escrever como acto de alcançar. Para Régis Bonvicino, a morte de João Cabral, talvez represente a morte simbólica, não só de um período, mas, a "morte" da poesia como acto político de resistência”. Repare-se no poema "A lição de pintura", onde verificamos um pensamento profundo sobre a arte (no caso, a pintura) e a criação, uma obra estando sempre aberta a vários sentidos e/ou significados (espécie de noção de "obra aberta" e/ou leitor implícito, defendida por Iser ou U. Eco. Uma permanente "porta aberta" num "permanente" acto de alcançar:  

Quadro nenhum está acabado,

disse certo pintor;

se pode sem fim continuá-lo,

(...)

que, feito a partir de tal forma,

tem na tela, oculta, uma porta

(...)

que leva a outra e a muitas outras.

 
Corsino Fortes .............J.C. de Melo Neto....