JOÃO GARÇÃO
Hieronymus Bosch: o pintor, o profeta, o visionário
Relance sobre um percursor medieval do surrealismo

“Devo confessar que a maioria dessas obras deixa uma
impressão dolorosa em minha mente” – Robert Fry

INDEX

Introdução
NOTAS BIOGRÁFICAS
Vida e influencia
O mundo em que se movimentou Hieronymus Bosch
O VISIONÁRIO INTEGRAL 
A actualidade de Bosch
Mergulho no inconsciente
O sonho e o maravilhoso
O revolucionarismo de Bosch
Uma análise final: a questão do processo criador

O sonho e o maravilhoso

Dizia Louis Aragon que “há outras ligações que o real e o espírito podem estabelecer, sendo também, à sua vez, primeiras, como a sorte, a ilusão, o fantástico e o sonho”.Para Bosch, o mundo – borbulhante de metamorfoses – não conhece a razão: o espaço anuncia ameaças, mas não tem dimensões. Neste aspecto formal, Hieronymus Bosch é a floresta que caminha mais rapidamente que o viandante e que o próprio tempo.

Para explicar os seus trabalhos, torna-se necessário recorrer ao simbolismo dos sonhos, mas penetrar-se-iam muito melhor as suas intenções secretas recorrendo ao domínio da psicanálise. Os historiadores de Bosch, como Tolnay ou Combe, defendem-no e o primeiro conclui: “Bosch fez um quadro cativante dos desejos reprimidos”.

Sobre este ponto não deixa de ser curioso e interessante verificar que muitas das obras de André Breton, como refere Yves Duplessis, mostram que os acontecimentos atribuídos à sorte ou ao azar mais não fazem que exprimir o dinamismo de instintos inibidos pelas convenções sociais. O surrealismo teve a originalidade de reabilitar o sonho e de lhe atribuir uma grande importância, pois no sonho tudo parece simples e natural: a angustiante questão da possibilidade não tem aqui lugar.

Para os surrealistas, a atitude mais natural seria a de ver, por todo o quotidiano e o usual, o maravilhoso e de tratar o estranho, o sobrenatural, como familiares, tendo-os sempre à mão. Por todo o lado onde a imaginação se manifeste sem os travões do espírito “crítico” (ou seja, uma deformação deste) aparece a surrealidade – ou dizendo de outro modo, a inteira realidade.

No surpreendente ”Jardim das delícias” (220 x 389 cm), do Museu do Prado, o universo boschiano apresenta-se-nos repleto de fantástico, onde os acontecimentos mais inverosímeis parecem normais: ao centro da obra, uma bacia circular recebe na sua água as figuras de mulheres nuas. Em toda a volta, numa cavalgada obcecada e louca, os homens montam animais estranhos. Segundo os mais recentes estudos psicanalíticos, os frutos enormes que salpicam estes jardins enigmáticos corresponderão aos símbolos de cobiças sensuais. A ânsia do desejo da mulher é proclamada pela acção colectiva que faz com que os homens girem em torno das banhistas de pé, nesta água que é também um símbolo, o símbolo imemorial do inconsciente pela sua fluidez indecisa e pelas suas profundezas traiçoeiras.

Contudo, nesta composição de Bosch que respira toda a pureza do fantástico notamos que, tal como o defendido pelos surrealistas, o fantástico e o maravilhoso se encontram como possível. Se topamos, por exemplo, com uma cena em que um homem contido num fruto observa um rato através dum tubo de vidro, e tomamos como impossível um homem estar contido num fruto, já não nos parece inverosímil que um homem e um rato se espreitem nas extremidades desse tubo: isto é possível. O que acontece é que o insólito não se encontra facilmente formulado, não existe a procura do efeito cómico. Freud referiu o facto de o humor ser uma “máscara do desespero”, aparecendo claramente como uma metamorfose do espírito de insubmissão, uma recusa dos preconceitos sociais. Para os surrealistas, os absurdos do mundo devem ser observados como que de um balcão, encontrando-se o Homem desligado dessa realidade exterior. Utilizando a demolidora arma que é o riso, o Homem é por este introduzido no universo da imaginação.

Em Bosch, acentue-se este detalhe, a incongruência nunca é cómica.