JOÃO GARÇÃO
Hieronymus Bosch: o pintor, o profeta, o visionário
Relance sobre um percursor medieval do surrealismo

“Devo confessar que a maioria dessas obras deixa uma
impressão dolorosa em minha mente” – Robert Fry

INDEX

Introdução
NOTAS BIOGRÁFICAS
Vida e influencia
O mundo em que se movimentou Hieronymus Bosch
O VISIONÁRIO INTEGRAL 
A actualidade de Bosch
Mergulho no inconsciente
O sonho e o maravilhoso
O revolucionarismo de Bosch
Uma análise final: a questão do processo criador

O revolucionarismo de Bosch

Longe de se refugiarem nas suas torres de marfim, os surrealistas mais não visam que demoli-las pela transformação da existência humana, para que as vítimas da realidade dela não se abstraiam fugindo, mas pelo contrário entrando nela para a tornarem conforme às suas aspirações. Bosch havia já sentido essa mesma necessidade. A esse propósito, atentemos no que refere Marcel Brion: “O que faz de Bosch um dos percursores e mesmo um dos pais do surrealismo contemporâneo é o facto de se encontrar nele uma ‘sistematização da confusão’ e uma ‘irracionalidade concreta’ que serão preconizadas quasi meio milénio depois por Dali. O Demoníaco aparece como contrapartida da Criação, o Universo Infernal oposto ao Cosmos Divino”.

Em certos meios fideístas chegaram a considerá-lo um ateu, um herético perigoso, cujas obras, pela imoralidade dos temas nelas representados, eram impróprios para serem apreciados por verdadeiros católicos praticantes. Por tais motivos, algumas foram retiradas dos locais onde estavam expostas e arrecadadas em lugares onde não perturbassem a moral pública, enquanto outros quadros chegaram mesmo a ser queimados.

Se fizermos uma estatística dos seus temas, por definição reveladores das suas ansiedades, vemos continuamente o tema da tentação. Bosch encontra este tema na iconografia cristã tradicional, que corresponde à obsessão pelo pecado, quer dizer, à obsessão de apetites inconscientes que vêm atacar as obrigações da moral. Se Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança, como parece insinuar, Satanás não perde a mínima oportunidade de destruir o que o próprio Homem, com orgulho desmedido, afirma ser a obra-prima da Criação. Esse orgulho desmedido abate-o Bosch mostrando-lhe até que ponto os mortais são capazes de descer quando os seus instintos bestiais, destruindo as frágeis carapaças a que estavam confinados a custo, irrompem impetuosos como uma torrente caudalosa, tudo destruindo na sua passagem.

O já referido “Jardim das delícias”, uma das suas obras mais famosas, é um repositório minucioso dos desmandos eróticos dos mortais, dominados pelo pecado da luxúria. Dividido em três partes, apresenta um prólogo, o próprio quadro e um epílogo. Quando fechados os dois painéis laterais sobre o central, outra pintura nos é mostrada: “A criação do mundo”. O prólogo é a representação do Paraíso Terrestre. Num jardim maravilhoso, embora extravagante em alguns aspectos, Deus e os Homens vivem harmoniosamente. Aqui é interessante e significativo verificar que Bosch, ao contrário de outros pintores que representaram o Éden, insere mesmo antes da expulsão germes diabólicos, como se Deus tivesse a responsabilidade inicial destes desmandos dementes, irracionais, expostos no painel central. Aqui encontramos um carnaval insensato de prazeres. O absurdo reina e governa os movimentos desta multidão. No painel da direita, chamado do “Inferno musical”, torturas demoníacas são aplicadas pelos próprios objectos que foram instrumentos de delícias, o sexo para os sensuais, o instrumento de música para os musicais, etc. Temos assim que a harmoniosa vivência do Homem foi transformada, terrenalmente, num asilo de loucos plenos de ilusões e de gozos e, post-mortem, num inferno onde tudo o que servia ao prazer se torna num objecto de instrumental mortificação.

Por ser um trabalho muito rico em símbolos, “O jardim das delícias” já recebeu inúmeras interpretações. Uma das mais curiosas é assinada por Charles de Tolnay, autor do livro “Hieronymus Bosch”, 1937. Baseado na psicanálise, Tolnay afirma: “ A intenção fundamental do pintor é tornar manifestas as consequências que derivam do prazer carnal e o caracter efémero deste: os aloés, suculentas plantas, ferem os corpos nus; o coral e as conchas dos moluscos aprisionam-nos. No pequeno castelo das mulheres adúlteras, cujas paredes de cor alaranjada são atenuadas por uma cristalina transparência, dormem rodeados de cornos os esposos ofendidos. A esfera de cristal, onde um casal se acaricia, e o sino do mesmo material que cobre pela metade um trio pecaminoso, vêm constituir uma espécie de ilustração do ditado que refere que o prazer é frágil como o vidro”.

Em a “Tentação de Santo António”, do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, o pintor vazou na forma de um tema ilícito tudo aquilo que o atormentava e que ele não teria ousado exprimir livremente. O cenário combina, uma vez mais, a água e os destroços causados pelo incêndio que consome raivosamente as construções dos homens para as transformar em ruínas calcinadas. Neste mundo nocturno, longe dos vermelhos terríveis das fornalhas, prefigurando o Inferno, Santo António sofre as investidas do Demónio que lhe oferece, capciosamente, ilimitadas possibilidades de domínio e poderio no caso de estar disposto a recorrer às práticas da “alquimia” e da Magia Negra que lhe permitiriam conhecer o segredo da “pedra filosofal” – transmutação de todos os metais em ouro e prata – e o da origem da vida. O velho anacoreta encolhe-se e sozinho mantém, como uma lamparina frágil, a luzinha ameaçada do espírito por todos os lados atacada. Bosch fica encantado quando as suas alegorias coincidem com os provérbios inocentes que abundam no espírito popular. Assim acontece em “O carro de feno”, obra que faz parte de um conjunto em forma de tríptico conhecido como “O tríptico do feno”. O provérbio diz: “O mundo é um monte de feno, cada qual tira o que pode”. No centro da obra, uma enorme massa compacta de feno empilhado exprime o objecto das cobiças mais variadas. Armado com gadanhas, berrando e saltando, o povo quer apanhar um pouco de palha. Pouco importa que alguns, na sua rivalidade, rolem no chão estrangulados, que outros sejam esmagados pelas rodas do enorme carro. Toda a Humanidade é arrastada na cobiça universal, todos os grandes estão representados: reconhece-se o rei, os senhores e até mesmo o papa. Onde se encontra, afinal, Deus? No “Jardim das delícias” encontra-se, quase invisível, a um canto. Em “O carro de feno”, aparece apenas como uma testemunha desesperada. As explosões de concupiscência e de pecado acompanham a profanação de Cristo. A obra de Hieronymus Bosch não dissimula a derrota que impõe a Deus, expressa até ao paroxismo em “O transporte da Cruz””, onde a figura ultrajada é esmagada no meio de uma massa compacta de faces ignóbeis, fazendo caretas, em que todas as taras morais estão marcadas de forma bem perceptível. Não podemos dissociar a iconografia boschiana da atmosfera da Pré-Reforma e de uma mística exacerbada. A derrota de Deus é, afinal, a derrota do Homem.

Nas pinturas do grande flamengo, a visão do mundo alarga-se imensamente. Como já foi referido, Bosch era um pintor medieval mas, ao contrário da maioria dos pintores medievais holandeses, já não se inspirava exclusivamente nos temas religiosos. Na sua obra sente-se passar já as primeiras inquietações que prenunciavam as grandes e profundas transformações que começavam a realizar-se na Europa. As visões de Bosch são, por assim dizer, uma síntese de todas as visões do mundo medieval. A sua concepção de vida é já universal. Na sua crítica ao Homem, é já a própria Humanidade que o artista critica.