JOÃO GARÇÃO
Hieronymus Bosch: o pintor, o profeta, o visionário
Relance sobre um percursor medieval do surrealismo

“Devo confessar que a maioria dessas obras deixa uma
impressão dolorosa em minha mente” – Robert Fry

INDEX

Introdução
NOTAS BIOGRÁFICAS
Vida e influencia
O mundo em que se movimentou Hieronymus Bosch
O VISIONÁRIO INTEGRAL 
A actualidade de Bosch
Mergulho no inconsciente
O sonho e o maravilhoso
O revolucionarismo de Bosch
Uma análise final: a questão do processo criador

O mundo em que se movimentou Hieronymus Bosch

O afastamento de Bosch em relação aos centros artísticos mais activos e o seu isolamento em Bois-le-Duc pode ser por si sintomático em relação à sua atitude face aos valores inerentes à formação do Gótico na Idade Média, afastando-se da tradição local do século XV. Pode também explicar o seu espírito anti-clássico e o seu sentimento refractário em relação ao Renascimento, podendo também, por este lado, explicar a sua pouca valorização por parte dos renascentistas, que nada mais viam nele, como Vasari, do que “o autor de verdadeiros pesadelos”.

O desenvolvimento da economia de troca, a circulação monetária, a emergência de grupos sociais com dinamismo próprio, o renascimento urbano e a concentração nas cidades, com o convívio quotidiano entre pessoas de tipos diferentes, vêm alterar profundamente todos os valores artísticos e culturais até então predominantes. Os quadros da civilização são destruídos para prepararem a sua renovação

Estamos perante um novo discurso, uma nova moral, perante valores que à medida que o tempo passa se vão recheando de contradições e sínteses evolutivas. Um sistema instala-se, perfeitamente inovador, e ao cristalizar cria dentro de si, no seu próprio discurso, o seu contrapoder, as mentalidades de contestação e antecipação ao próprio sistema. As estruturas colectivas caem e retiram o apoio às consciências individuais: entregues a si próprias e às suas forças de organização, estas voltam-se então, como que numa espécie de pânico, para as profundezas que lhes subjazem, assim como um animal assustado procura refúgio na sua casca, no seu fojo longe da luz do dia. Foi o que aconteceu no fim da Idade Média.

Ante as novas forças que ascendiam ao assalto da medievalidade, Bosch tomou consciência dos novos valores que o rodeavam, apelando para outros continentes da imaginação. A sua alma inquieta e inquietante, aproveitando as férias da legalidade racional provocadas pelo cansaço da civilização dessa época, encontrava tanto no consciente colectivo da Flandres, sempre atenta ao diabólico, como no seu inconsciente individual epessoal, atormentado por agitações suspeitas, uma injunção para libertar a avidez das tentações. As suas imagens reflectem preocupações tipicamente medievais: pecados, tentações, histórias de santos, tudo transmitido com cores delicadas, justapostas com equilíbrio e refinada sabedoria pictórica. Hieronymus Bosch inspirou-se sempre, mesmo nas suas obras mais percorridas pelo fantástico, em aspectos do quotidiano. No entanto, é evidente a grande transformação que o artista faz dele. É o caso da chamada “Nave dos Loucos”, por exemplo, obra situada por volta de 1500. O tema do quadro é o mesmo do poema de Sebastian Brandt, “Das Narrenshiff”, publicado em Basileia, no ano de 1494, em dialecto estrasburguês. Esta obra literária depressa foi objecto de grande difusão, adquirindo notoriedade por tal forma que foi inclusive publicada em latim pouco tempo depois. Por isso não causam estranheza as coincidências temáticas entre o poema de Brandt e a pintura de Bosch.

Ludwig von Baldass, considerado o maior conhecedor da obra boschiana, afirma: “Pelos problemas que coloca, ele está absolutamente sozinho. É o grande solitário da História da Arte. É o pintor que, através da sua arte – que está historicamente à altura da sua época – quer mais do que os outros. Não aspira a divertir, a instruir ou a educar, mas a criticar e a profetizar. Apresenta à Humanidade um espelho de duas faces. Nele, a Humanidade vê reflectida, por um lado a sua necessidade e a sua perversidade; por outro, as consequências terríveis, no Além, resultantes dos seus pecados mortais. Nesse sentido, Bosch continua a ser um filho da Idade Média; mas, pela maneira totalmente independente nos exemplos que emprega para representar as suas concepções dentro das manifestações artísticas, ele pertence aos tempos modernos. Dessa forma, encontra-se no limite entre duas épocas”.

Aqui tocamos um ponto importante em relação ao problema que nos propusemos tratar. É que nunca o clima espiritual onde o mestre quatrocentista realizou as suas profundas sondagens se aproximou tanto, conforme parece, do similar hoje existente no mundo. Nunca a efémera passagem do homem pela Terra e as preocupações a ela ligadas, tratadas pelo artista flamengo ousadamente em relação à época, foram novamente tão longe como no nosso tempo.

"No fundo, o homem actual como o do tempo de Hieronymus Bosch – como afinal o de todas as épocas – não será dominado por preocupações idênticas?". O fenómeno da equivalência, caso exista na realidade, só é devido ao facto dessas preocupações, latentes noutras épocas, terem agora adquirido uma acuidade que já deve ter ultrapassado em muito as dos homens que viveram no decurso do dramático período de transição do século XV para o século XVI.