JOÃO GARÇÃO
Hieronymus Bosch: o pintor, o profeta, o visionário
Relance sobre um percursor medieval do surrealismo

“Devo confessar que a maioria dessas obras deixa uma
impressão dolorosa em minha mente” – Robert Fry

INDEX

Introdução
NOTAS BIOGRÁFICAS
Vida e influencia
O mundo em que se movimentou Hieronymus Bosch
O VISIONÁRIO INTEGRAL 
A actualidade de Bosch
Mergulho no inconsciente
O sonho e o maravilhoso
O revolucionarismo de Bosch
Uma análise final: a questão do processo criador

Mergulho no inconsciente

Já Leonardo da Vinci, expressamente, havia insistido na importância da imaginação criadora para a qual a síntese das percepções mais não seria que um trampolim para passar ao real. Bosch parece ter feito mais, anunciando uma independência de espírito que só as futuras gerações de artistas conquistariam plenamente. Sérias razões tinha Frei José de Siguenza ao afirmar que o mestre flamengo não se havia limitado a pintar o Homem entrevisto no seu aspecto puramente exterior mas ousara ir mais além, pintando-o tal como era por dentro (Historia de la Orden de San Jerónimo, 1599).

Bosch foi um detonador da imaginação humana. De facto, foi ele o primeiro artista a sondar, com obsessiva curiosidade, o mundo obscuro, impreciso, sempre mergulhado em densas trevas, que é parte integrante de cada ser humano e o define psicologicamente. Um mundo onde se debatem forças contraditórias, que tão depressa o podem elevar acima da sua condição de mortal dominado apenas por instintos primários, como torná-lo uma presa inconsciente desses instintos e, então, o mais vil e cruel de todos os seres da Criação. A pintura apresentar-se-á então como expressão da segunda vida do Homem.

Os surrealistas, no entanto, alertam para a necessária recusa de certos vícios mentais e conceptuais decorrentes desta atitude, excluindo o maravilhoso elaborado sem necessidade interior. Somente os artistas que tentaram dar ao sonho, ao desejo, à imaginação um papel fundamental – e por isso libertador – nas suas composições, apresentam para eles qualquer interesse. O surrealismo apresenta-se mais como evocação de um possível completado pelo desejo e pelo sonho que a descrição do impossível. Assim, há pintores de universos insólitos (basta consultar-se a Internet e ver-se-á quantos “surrealistas” desse género lá pululam, visando vender alguns quadros) que nada têm a ver com ele, como é o caso por exemplo de Odilon Redon (aliás pintor de reconhecida qualidade estética) que nos seus trabalhos multiplicou animalejos fantásticos e paisagens de pesadelo sem outra intenção que não fosse a de colocar “a lógica do visível ao serviço do invisível”. O grupo surrealista refuta energicamente o parentesco com este género de apologias, porquanto o que lhe interessa e o fundamenta é a transfiguração e a interpenetração dos dois planos. Ao defender convictamente que no espírito humano há tesouros escondidos, a par é claro de sótãos inomináveis, proclama a sua ligação a Bosch pois, segundo refere, a preocupação filosófica do pintor de Bois-le-Duc, mais que ser moralizadora, faz com que a sua obra seja “uma pintura que contém um segredo”assim sendo, por definição, “uma pintura surrealista”.