A MÃO SOBRE O MÁRMORE / A CASA DE LORD BYRON
José António Gonçalves
04-04-2005 www.triplov.org

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Não sei porque chove. Sei apenas que chove.

E a água contínua, persistente, forte, bate-me

na vidraça e o vento movimenta as persianas

completamente molhadas, contra o rosto aberto

das janelas. As bátegas escorregam do telhado

de barro vermelho para o chão, de forma impediosa,

alagando as flores. Junto às paredes frias da casa,

com o relampejar da tempestade, o que é que se nota?

Uma sombra perdida, reclinada e doce, duma rosa.

 

Dentro do quarto vou escutando os ecos da trovoada,

só, com um livro na mão, lendo poesia, à luz da vela.

As palavras misturam-se com os ruídos do temporal,

com o quebrar dos galhos das árvores, o granizo

saltitando ao longe, os zincos soprados pela ventania,

homens correndo para fugirem do aguaceiro, cães

ladrando contra o escuro. Sobre o tecto, no ranger lento

das tábuas, o som duns passos arrastados, de cascos

de bode, misturado com gargalhadas, um estranho riso

que só desaparece aos poucos, com o nascer do dia.

 

O vulto de Lord Byron, nesses instantes, vai e vem,

nos confins da memória que dele nos deram as imagens,

agora perdidas, do seu bestial destino. É o oposto exacto

ao Natal do menino que Dezembro venera. Une-os a loucura

de não temerem a morte. Um purifica-se, outro ao diabo

entrega-se em festa. Um escolhe a gruta, mas empobreceu;

o poeta, esse, nunca se preocupou com um lugar no céu

e arrasta consigo as correntes das chamas satânicas. A cura

não a busca; ama o impossível. O irreal. Ao fim e ao cabo

o seu sonho ficou completo, vivendo num palácio de luxo,

construído sobre estrofes, versos, sílabas, rimas. O afluxo

dos espíritos superou o sangue dos mortais. Cavalgou alegria

onde morava tristeza. E nela desceu às profundezas da poesia.

Escolheu friamente a viagem; usou o bilhete da alma. De fora

deixou o resto. Está no inferno do poema, a casa onde mora.

 

José António Gonçalves
(inédito 03.12.04)