GÉNESE

I

No princípio não era o fogo nem o verbo,
era a mudez que nem mudez existia,
o nada para além do nada sequer nada,
silêncio sem semântica, a negação de tudo,
o tudo não havendo senão depois criado
por olhos assustados com o tremor da carne
donde emanou a linfa dos deuses luminosa.
Nem massa concentrada era a do big bang
porque início não era nem se inventou sequer
a palavra real para a palavra antes
que pulsa como luz negra nos telescópios
à beira do limite e dos magos divinos.
Biliões de anos são o mesmo que uma vida
enquanto para si se olha e o coração bate,
medida de nenhuma coisa ou ente inominado,
sucessão de algarismos ou sonho matemático,
fórmulas saciadas que a luz devorará
nos mil computadores de discos sem memória.
No princípio era o nada para além desse nada
em que nada existia, nem a palavra início,
nem sequer o vazio absoluto ou ideia
ou fantasia fácil de cálculos do explicável
e do ignoto onde os verbos perdem todo o sentido.
Nem os deuses fizeram expandir o Universo
nem existiam antes dele porque esse antes
é a medida humana para o tempo passado.
Havia o movimento que ainda prevalece
da confusão do caos ardente donde a vida
se gera e se dispersa quais girinos do sémen
em busca da expansão mais próxima e certeira
de outro e mais candente útero. É o poder afinal
que vem de trás e vence e nos ultrapassa
vivos de incandescente lava explodida,
progressão geométrica rumo à gravidade,
fatais buracos negros, metáforas da morte
e dessa eternidade única o movimento,
a física aleatória que sempre nos persegue,
fissuras e fusões, nuvens de pó, gás, química,
milhões de estrelas mortas, planetas devorados,
não é a criação do mundo, é a auto-génese
eivada de palavras-passe não confirmadas.
E contudo é possível imaginar o instante
em que se forma o espaço, poeira, luz e gás,
seres moleculares que somos empunhando
cálculos vitoriosos. A explosão propagou
ondas em labaredas e alargando o Universo
embateu nas vidraças dos limites altíssimos
e sem matéria ou espírito, esse limbo inquieto
onde se vê o rosto de Deus colado aos vidros,
contemplando a sua obra e explicando-a perfeita
em comuns liturgias sob o medo sagrado.
Foi só uma explosão e muitas as palavras
e cenários iguais de profetas, astrónomos
e poetas antigos, os destes mais belos,
e não as folhas brancas povoada de números.

II

Da poeira surgiu a redonda esfera ígnea
voluteando rubra o incandescente corpo
no seio da galáxia, o óvulo, a Terra enfim.
Nada havia senão pó, calor inaudito
e a violenta luz das estrelas fundindo-o
na entrecruzada força da atómica matéria,
o caos escuro, o vácuo, a convulsão final,
a claridade explode o gás em labaredas,
ó ventre que de ti próprio nasces, a deusa
sonhada pelos homens milhões de anos depois.
Arrefece em tremores da primeva batalha,
só, entre minerais desordenados fluidos,
em cabeleiras do fogo que ainda hoje perdura
nos altares humanos a resguardar do medo
a solidão da morte e o fim sem outra vida.
Refugia-se a lava nas entranhas ocultas
e condensam-se as águas no primeiro dilúvio,
o mar, os altos montes cuspidores de estrelas,
a desordem do caos, o fumo, o tempo ausente
e longe a fotossíntese em muros de rochedos
que a água primordial vai transmudando em praia,
cada balde de areia que as crianças transportam
sonhando com cidades na orla da espuma fria
são séculos fora do tempo sem medida ou ideia,
apenas movimento em ondas já telúricas
do impensável deserto, terra nua sem flores
na paisagem primária que se estende e arrefece
enquanto o globo gira sobre si mesmo livre,
prisioneiro na luz do Sol, esse outro deus.

III

As águas solitárias arfam na areia em ondas,
a espuma branca ao sol vai nela misturando
a luz e o ar e os ventos. Deles irá nascer
humílima a primeira face de um deus singelo,
sem espírito o deus, só matéria da origem,
síntese que em duas folhas aparece minúsculas
e os raios amansados brandos cuidam e afagam
a primeira das cores entre a ausência de cor,
o verde que nos enche os olhos de campinas,
até surgir a flor pequeníssima azul,
corola que vibra ao vento as delicadas pétalas
cujo cálice a si mesmo se abre e fecunda,
e desse acaso nasce uma nova flor
e de flores nascem flores e nasce o tempo,
o tempo primitivo, a seiva que circula
tocada pelo sol, a luz doce que vemos
e nos acaricia o rosto nas manhãs
que olvidadas sobejam do princípio do mundo
e às vezes ao acordar descobrimos que existem
e se dão ao olhar, um instante apercebido,
pura, remanescente e limpa claridade.
E as flores devagar ao longo de milénios
plenos de tempo quais frutos por abrir
maturando-se a si mesmos e preparando
o variado mundo — as flores devagar
as pétalas transformam em asas e são pássaros,
pássaros que levantam voo e aspiram ao sol,
pássaros que mais tarde cálidos entre as mãos
as crianças transportam e levam para casa
com o mesmo sentido que fez das flores aves
e as levou a soltarem-se do cálice
e ao mergulho no mar fatal, a transmudarem-se
em peixes e os agudos dentes que exibem são
os primeiros punhais, a morte em gritos surdos,
a fome, os ais, as vítimas, tudo emerge das ondas
e ocupa a terra firme nutridora e se espalha
e transforma em galope um tropel de sangue e urros.
Disto falam os livros sagrados e nomeiam
o pecado da origem. Tudo deve ter lógica,
ainda que não seja justa, ainda que seja ilógica,
e se do tropel o homem avulta ensanguentado
é porque não quis ser flor, ave, o paraíso,
e nas folhas dos livros sagrados vê-se um deus
de forma humana, barbas brancas, o olhar tremendo,
expulsando-o não sei para que frio norte
no meio de mil bestas negras em debandada.
Mas o homem vive e pensa, ninguém sabe se os roncos
que soltava no coito eram o aflito sémen,
se do prazer nascia a ternura e o espírito,
se era apenas o código brutal dos cromossomas
que ainda prevalece em cada rua suja,
em cada fêmea, aberto o sexo receptivo
às estocadas breves, ao único prazer,
talvez também se rissem, talvez também amassem,
talvez dançassem antes como sucede às aves,
talvez, é uma dúvida, a suspeita inocência
que aprendemos nos livros sagrados em meninos.
Morrer porém morriam ignorantes da morte,
ignorantes de tão opaca mudez fria
e não sei se choravam, do além nada sabiam,
Deus não havia ainda, era longe a eternidade.
Se algum deles matou primeiro Caim
não teve nome, nomes não havia sequer,
nem palavras, havia só a força escura,
a fome, a tensão, o cálculo, não ainda o pecado,
devagar se gerava todavia o poder
nas mãos dos mais robustos, a morte era o seu ceptro
que hoje os reis gloriosos empunham como herança.

IV

Não foi a divindade, que não surgira ainda,
não foi a punição de imaginadas faltas,
a faca do remorso que brilhasse divina
coagindo homens e feras a deixar o galope,
o sangrento galope que em brados e despojos
desde o início assola o planeta. Não foi.
Foi o poder imenso que jamais adormece,
que somente se acalma, que apenas se esconde
debaixo das campinas verdes onde os humanos
aprenderam que havia o horizonte do olhar,
foi o poder oculto que alimenta as raízes
e as transmuda em frondosas copas e flui em lava
e ergue e sustenta o tempo, o poder ao qual
os bandos em terror se dobram e ajoelham
e clamam Deus, ó Deus não nos dês a morte!
Foi o escuro poder oculto do Universo,
o tremor sempre activo da energia atómica,
milhões de vezes Deus, incompreendido deus
que sacerdotes rudes nomearam senhor
e que um dia mais tarde foi coroado rei
de reinos e de reis, da amorfa mole dos súbditos
que mudamente jaz sem vingança na História,
foi a força do big bang, a guardada réplica
que revolveu o mar, convocando o céu
e os ventos, e que os rios transbordassem das margens,
e o oceano engolisse nuvens, e os rios, plainos,
e outras nuvens mais negras se formassem, alados
exércitos cercando a terra em convulsão,
e com os seus relâmpagos cegassem de terror
as árvores, os pássaros, a inocência bruta
e a chuva desabasse em violento espanto
expulsando dos campos homens, bestas, feras.

Vitoriosas, calmas, sobem então as águas
e alagam com a sua viscosa e larga língua
de lés a lés o círculo do silêncio sem vida.
Céu e mar são a cor da ausência extrema,
são a paisagem onde adormece e se esvai
o pensamento até à mais pura abstracção,
pensamento que pensa e sem pensar cogita,
se volve em quase espírito, quietude do olhar,
ideia de outra morte, de fria paz, silêncio,
ideia de miragem tão-somente em poesia,
mudez de um mar de cinza que emersos cumes deixa.

Como há-de imaginar-se o pico onde aquele homem
medita fitando em baixo as águas lisas
e dizendo prefiro viver aqui mil anos
do que ser obrigado a nadar até à morte?

Já os seres aos gritos devorando as entranhas
sustentam a esperança que um dia as águas desçam,
de novo a carne em guerra, a carne frente ao mar,
a carne cospe os restos e a corrente transporta
das campinas submersas os corpos afogados.
São as futuras algas, cabeleiras que ameigam
a face e o sexo inútil dos náufragos vindouros,
enquanto todos lutam e acossados evadem-se
sem terem para onde ir senão para o acaso,
morrer ou não morrer no limiar das águas.

Longo e tão largo mundo de noites sucessivas,
de noites encharcadas, de auroras sem mais dia,
de manhãs mais desertas do que os olhos vazios,
só água, e onde a terra? Talvez se lamentassem
os homens de entre as bestas nos isolados altos
e vissem navegar no céu a barca de Noé,
delírio, sonho, símbolo, quem sabe só vontade
de olhar uma outra vez as árvores frondosas,
um vago sentimento de amor à terra fértil
onde as pegadas lembram trilhos e logo esquecem
o apodrecer de restos e corpos sobre o mar.

Adormecidas pela cinza do tempo vão-se
as águas recolhendo às primitivas margens
e devolvendo à terra o húmus dos cadáveres.
Os dedos do sol surgem e as sementes despertam.
Nasce a erva nas campinas e um humano curva-se
e olha a flor azul mínima do começo do mundo.
Essa flor é o imenso deus, vive e prevalece
única sobre os deuses de sombra e névoa esparsa.

V

Longos, desertos campos afinal, terra e céu
e o olhar de alguns humanos, já diverso e tão claro
como um sol que por dentro iluminasse o dia,
vê a desamparada solidão sem sentido,
em redor o emergido mundo, o silêncio, o vento
que congela e assobia os uivos do abandono
e traz a noite escura de mil olhos luzentes,
de estrelas projectadas, impossível distância
onde não chega a ideia e onde se distorce,
é possível sonhar um homem e uma mulher,
dois seres, dois olhares, duas mãos que se têm
para não se perderem nas fauces daquele ente
que tonitroa a voz e ameaça de morte
os homens cujo tempo tem a medida certa,
calibrada nas veias, um ente poderoso
que empunha a carnal morte asseverando o espírito,
asseverando um reino de deuses sem sentido
toscos e cruéis à medida dos humanos
e da sua matriz do princípio do mundo,
toscos como eram suas vidas e seu aspecto,
eram quase bugios, e os deuses, montes
que nenhum deles pôde ou conseguiu passar,
toscos porém sensíveis pouco a pouco morrendo
uns depois dos outros, acrescentando em cinza
a ciência dos ossos acumulada — homens,
a eternidade ao seu alcance imaginada
e as mãos laboriosas a buscar no futuro
o presente por nós hoje visto nas ruas.
Oh, que antigo é o presente, vem antes do dilúvio,
vem antes de haver antes se tal fosse possível,
se os números se apagassem, se a luz da matemática
fosse o clarão divino que sempre se esperou
e que os homens saídos das terras alagadas
com o pó dos seus ossos, com o seu morto espírito,
com a sua negada alma clamavam de entre
as bestas galopantes que assolavam a Terra.

Regressemos ao tempo. Subamos a um cume alto
donde se aviste ainda as águas do dilúvio.
Olhemos. As cidades erguem os seus pináculos,
estendem o seu corpo, oferecem-se aos homens,
as ruas são alfombras e avenidas de gente,
e de noite a emanada luz ofusca as estrelas.
Quem sabe quantas mortes cada um dos alicerces,
cada uma das muralhas exigiu de resgate?
Sobre ossadas dormimos, sobre ossadas amamos,
sobre ossadas fazemos a eterna guerra e a paz
e as bestas galopantes cavalgam no horizonte,
longe cavalgam sobre as ossadas antigas
e devastam os vivos em combates mortais
travados noutras eras. Onde estão esses corpos?
Ninguém sabe, é difícil imaginar os homens
que deixaram pegadas sob o chão das cidades,
No entanto da montanha não somente se avistam
as cidades e a sua glória, avista-se o campo
donde os homens vieram descidos das montanhas
e onde a flor azul mínima sem nome prevalece.
É o deus soberano dos homens e dos deuses
e reina sobre as águas reinando sobre a morte.