CLEPSHYDRA (CAMILO PESSANHA) / SIMBOLOGIA DE UM TÍTULO
EM MEMÓRIA DE TEREZA COELHO LOPES
04-10-2003 www.triplov.org

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SIMBOLOGIA DE UM TÍTULO - TEREZA COELHO LOPES

IN: CLEPSIDRA DE CAMILO PESSANHA (TEXTOS ESCOLHIDOS)
APRESENTAÇÃO CRÍTICA, SELECÇÃO E SUGESTÕES PARA ANÁLISE LITERÁRIA DE
TEREZA COELHO LOPES
SEARA NOVA, EDITORIAL COMUNICAÇÃO, LISBOA, 1979


Le gouffre a toujours soif; Ia clepsydre se vide.
Baudelaire, L'horloge, em Les fleurs du mal.

Camilo Pessanha parece ter ido buscar a este verso de Ch. Baudelaire a palavra/símbolo clepsidra, que elegeu como título do seu único livro de poemas. Tal escolha passa a constituir, desde logo, um primeiro modo de identificação da obra, que leva o leitor a inseri-Ia no movimento simbolista e a preparar-se para penetrar nas «forêts de symboles» de que Baudelaire fala no célebre soneto Correspondances (em Les fleurs du mal).

Se tal atitude não é incorrecta, o certo é que a palavra clepsidra assume, na obra de Pessanha, um papel bem mais importante, que abrange o conjunto de textos nela integrados. Vejamos como.

A palavra clepsidra vem do grego kleps-udra, que contém o verbo kleptô (roubar, enganar, dissimular) e o nome udor (água, em várias acepções e, muito concretamente, água da clepsidra), e significa relógio de água para marcar o tempo atribuído aos oradores. É a partir dessa significação primeira que se estabelece o símbolo. Designando (plano denotativo) a fracção de tempo correspondente à circulação da água no relógio, a palavra passa a designar, num plano conotativo generalizante, toda a passagem do tempo, logo a passagem da vida e a inevitável aproximação da morte.

A este investimento filosófico do sentido da palavra, tornada símbolo, não será certamente estranho o facto de o objecto que designa estar ligado à oratória, a uma certa utilização erudita (ainda que não forçosamente) da palavra. Aliás, é por via erudita que o termo penetra na língua francesa e, através desta, no português. É também nesta primeira acepção simbólica que Baudelaire claramente a emprega.

Pessanha vai mais longe, ao jogar com este primeiro nível simbólico para, sobre ele, construir um segundo nível que corresponde a uma conotação restritiva. De facto, a palavra clepsidra contém o som terminal (e, por isso, persistente) -idra que, na linguagem oral, se confunde com hidra (em grego udra, serpente de água e, no plano mitológico, Hidra de Lerna). A hidra é um monstro marinho, uma serpente gigantesca, com inumeráveis cabeças que nascem e se desenvolvem à medida que são cortadas, simbolizando a inutilidade da vontade e do esforço humanos perante algo que lhes é exterior e adverso.

Simultaneamente, a hidra simboliza, nas suas múltiplas cabeças, os múltiplos vícios do homem, cuja erradicação se considera impossível e que contaminam não só a sua existência como a sua essência, tomando-o frágil e inepto.

Conjugando o primeiro nível simbólico com os significados específicos da hidra, Pessanha obtém o segundo nível simbólico que restringe o plano conotativo da clepsidra - todo o passar - ao passar da existência humana, tornado inevitável pelas características desta existência. Atente-se no soneto Esvelta surge! ...(nº 11 da Antologia. Vide linhas de leitura):

Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
Eis-me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! - para o expor à Morte...
Mas que ora - a infame! - não se te anteponha.

A hidra torpe!... Que a estrangulo... Esmágo-a
[...]

A hidra materializa aqui a Morte, a pulsão de destruição, por oposição a Eros, a pulsão de conservação, representada, pelo menos a uma primeira leitura, pela figura feminina.

A palavra clepsidra surge apenas duas vezes no livro de Pessanha: no título e no último texto, intitulado Poema Final

Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.

[...]

o qual exprime uma progressiva quietação, até ao desaparecer da expressão mínima de vida: Não respireis. O respirar implica a existência de vida não apenas fisiológica mas também intelectual: é o circular do sopro anímico, associado à actividade do espírito, à criação. Poema Final, que foi escolhido pelo poeta para fechar a colectânea, significa claramente a última fala, ou seja, a extinção do sopro, a cessação da criação. A clepsidra esvazia-se, o eu extingue-se, o seu verbo esgota-se, a obra termina. A palavra não consegue decepar as inumeráveis cabeças.

De tudo isto, há a reter dois aspectos fundamentais:

1. o facto de a palavra clepsidra estar íntima e originariamente ligada ao próprio exercício da palavra;

2. o facto de, através da sua associação à hidra, a clepsidra designar a fragilidade da condição e do conhecimento humanos.