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JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
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«O saco do adeus» ou a geografia dos afectos
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Se todos os poetas, mesmo os mais obscuros, podem aspirar a ter uma família poética então a minha família tem toda a ver com a Estremadura. Vejamos: Guilherme de Azevedo, Cesário Verde, Carlos de Oliveira, Ruy Belo, Armando da Silva Carvalho. O mesmo é dizer Santarém, Lisboa, Linda a Pastora, Cantanhede, São João da Ribeira e Olho Marinho. Não estranhem Santarém como Estremadura porque o Ribatejo foi criado nos anos 30 do século XX por Oliveira Salazar e meia dúzia de amigos que eram ex-colegas de estudo em Coimbra. Em 1850 Santarém era Estremadura. Quanto a Carlos de Oliveira não há grande diferença entre a Alta Estremadura da também minha Gândara dos Olivais e a Beira Litoral da sua Nossa Senhora das Febres.

Tal como na poesia de todos eles, eu procuro trazer aos meus versos a paisagem e o povoamento da Estremadura. Reclamo a sua memória e o seu exemplo, o seu percurso e os seus resultados poéticos nas páginas dos seus livros que sempre sinalizaram o encontro do homem com a terra. Num tempo actual de gente desenraizada e infeliz, mais preocupada com o «ter» do que com o «ser», é nas raízes perdidas que podem começar a procurar a explicação para o vazio do quotidiano das suas vidas cinzentas.

Se há nos meus livros um que transporta na sua respiração a saudade de uma localizada geografia de afectos, esse livro é «O saco do adeus». Desde logo no poema «Terra» da página 13 que regista o movimento do cheiro da terra na mão de quem escreve o respectivo poema. Mas também o poema «Terra trazida» da página 32 que leva esse encontro entre motivo e resultado a juntar na mesma mão o poema (cultura) e a alface (natureza). A província enquanto tal (tempo e espaço) é a protagonista do poema «Linha do Oeste» da página 35 numa viagem quem é sempre nova embora possa parecer que vai afinal repetir em tudo a viagem anterior.

Por seu lado a geografia de afectos oscila entre a alegria de «Festa» do poema da página 42 que arranca ao som de uma trompete e a tristeza da «Marcha Grave», o poema da página 31 que mergulha na memória do tempo em que a morte não existia ainda no horizonte do autor desse poema.

Há aqui uma viagem à Estremadura mas também uma viagem à infância do poeta como no poema «Jardia» da página 30 quando os meninos de dez anos já sabem que não podem perder nenhum ano escolar porque aos quinze são obrigados a começar a trabalhar. Porque os filhos dos motoristas não iam para o Liceu.

Livro escrito entre Dezembro de 1999 e Dezembro de 2000, «O saco do adeus» deve o seu título a uma passagem de um conto de Dinis Machado sobre os comboios do Rossio e os seus tios da Beira Alta. Claro que «saco do adeus » é uma metáfora. Ninguém guarda um adeus num saco mas na organização da narrativa (sempre poética) da prosa de Dinis Machado, depois do saco dos queijos, do saco dos enchidos e do saco com o pão duro mas saboroso da sua terra de origem, o saco do adeus é o lugar invisível onde o grande escritor (então menino) guarda os beijos húmidos dos tios e das tias da Beira Alta. Beijos húmidos de terra e de ternura porque, como já outro poeta da prosa (Raúl Brandão) tinha avisado antes, «a ternura é húmida».

Livro feito de terra, de memórias, de viagens, de sonhos, de lágrimas e de muito sangue pisado, «O saco do adeus» é (procura ser) esse lugar mágico onde os cheiros inconfundíveis da Estremadura (o iodo do mar, o mosto dos lagares, a fruta das encostas, a urze da serra) se misturam com a luz fascinante da mulher ora presente ora ausente e com a água dos grandes rios interiores da paisagem sentimental de quem sofreu por dentro este livro muito antes de o escrever e de o publicar.

Oxalá os antepassados ilustres invocados no princípio deste texto (Guilherme de Azevedo, Cesário Verde, Carlos de Oliveira, Ruy Belo, Armando da Silva Carvalho) não venham de modo nenhum a rejeitar a companhia obscura mas efectiva que este livro agora editado pretende assegurar na geografia poética da Estremadura.

Estremadura. Aquela que é, sem qualquer sombra de dúvida, na sua grande diversidade (praias, planícies, encostas, serras) a mais bela das províncias de Portugal.

José do Carmo Francisco