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JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

Lorca no caminho do Montijo

Era pelo Inverno de cinquenta e sete.

No Porto Alto um homem de capuz e oleado

segurava uma lanterna com dois vidros pintados

e fazia alto com a outra mão.

A ponte sobre o Sorraia era de madeira

e só passava uma camioneta de cada vez.

Não havia ao tempo muitas Mercedes Benz

de cor verde e com a chapa do Estado.

Meu pai saudava o homem entre a chuva

e desejava-lhe uma boa noite impossível.

 

Se recordo estes passos e rituais

dos caminhos desse tempo

é porque aquele lugar marcava para mim

o principiar da circulação de uma temperatura

que me fazia lembrar Lorca.

Eu tinha aprendido a ler nos jornais.

Meu pai trazia-os à noite para casa.

Terá sido num «Diário Popular»

que li um texto sobre o poeta assassinado.

Mesmo sem conhecer os seus poemas

comecei a sentir naquele espaço

a respiração do verde e do vermelho,

a relva sem fim e o sangue dos touros,

o pó levantado pelos cavalos breves,

os gritos dos campinos sempre longe

e a noite sempre negra e sempre longa.

 

Mais à frente, a caminho do Montijo,

respirava o sal de Alcochete,

o sabor conservado de uma angústia serena,

a ideia imaginada de que estes campos verdes,

estas oliveiras e este som da alegria

rente à raiz de tudo

poderiam ter sido caminho

do poeta Federico Garcia Lorca.

 

Ainda hoje não sei porque cavaram

tão depressa os cabouqueiros da morte.

Sei que entre o Porto Alto e o Montijo

algures entre verde e verde

uma sombra esguia faz sinal aos deuses

e os deuses param. 

Lorca poderia ter morrido aqui

à porta desta taberna, a caminho do Montijo. 

 

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO (Santa Catarina, Caldas da Rainha,1951).

Prêmio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. Colaborou no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses do Instituto Português do Livro. Poeta. Possui uma antologia da sua poesia publicada no Brasil. Jornalista, colaborou entre outros em "A Bola", "Jornal do Sporting", "Remate", "Atlantico Expresso"...

Autor de "Universário", "Jogos Olímpicos", "Iniciais", "Os guarda-redes morrem ao domingo", etc., bem como de antologias como "O trabalho", "O desporto na poesia portuguesa e "As palavras em jogo", entre outras.

É secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários. Vive em Lisboa.
 Contacto: jcfrancisco@mail.pt

 
 
 

 

 

 



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