CARLOS VAZ..........

Antologia 2011

era uma vez um coleccionador de introduções. Mal entrava numa livraria, corria logo para as páginas iniciais dos livros e arrancava-as com toda a avidez. Um dia, enquanto este coleccionador de introduções se mantinha entretido a rasgar as ditas primeiras páginas, na famosa livraria onde várias vezes fora proibido de entrar, tropeçou numa leitora que, ao contrário dele, coleccionava os mais belos desenlaces.

Segundo a história, o coleccionador de introduções e a leitora dos ditos desenlaces apaixonaram-se quase de imediato e ao fim de alguns anos, não muitos, tiveram um filho traquina que avançava sempre as primeiras páginas e nunca chegava ao fim de um livro

era uma vez uma leitora que coleccionava desenlaces. Pegava num livro, corria para as últimas páginas e arrancava-as de imediato. A sua obsessão começou quando lhe disseram que os escritores guardavam para o fim a parte mais bela de toda a história. Um dia, enquanto a leitora se mantinha entretida a rasgar as últimas páginas de um livro, conheceu um leitor, bem mais novo, que coleccionava apenas as introduções, porque - segundo ele - lhe tinham confessado que os escritores dedicavam mais tempo às primeiras páginas para agarrarem os leitores.

A leitora que só lia os desenlaces e o leitor que só lia as introduções apaixonaram-se e tiveram um filho que desistiu de ler e uma filha que lia sempre tudo do principio ao fim

O PRINCIPIO DA INCERTEZA, Heisenberg

alimentam-se dois pintores da tonalidade fraca de uma luz
sobre a imagem de dois frutos
o primeiro, mais a direita, desenha pêssegos
o segundo, mais afastado, limões

por não se entenderem, acendem o espaço
e vêem duas laranjas

desiludidos pelo engodo, descascam e comem
gomo a gomo o que afinal não pintaram

 

poemiocárdio

na ponta dos dedos sentiu as artérias vibrantes que dão carne aos partos

procurou assim toda a metade direita onde se agregam as mensagens venosas

que têm o mesmo paladar a ferrugem alojada num prego



sem nunca encontrar um registo que fosse

viajou para a metade esquerda, onde dão à costa

pequenas tábuas escritas com sangue arterial, mas nenhuma delas lhe falava do amor



dali seguiu para a mais alta subida,

almejando a sístole e a diástole que choraram com espasmos e contracções

até romperem o lençol manchado com as pétalas vermelhas das coisas



traçou os riscos e uniu os pontos do

código piroclástico de cada batimento cardíaco,

o coração era pouco maior do que o seu punho

mas tinha a mesma vontade da explosão do cosmos

por isso, antes que o poema acabasse, partiu em direcção aos hemisférios onde

se inclinam os sete sois que iluminam o mundo

mas aqueles poucos nativos, que alcançaram a barcaça, nunca souberam explicar o que era o amor

por birra, um rei zarolho mandou arrancar a língua de todos os poetas. Depois de dilatados, perseguidos e encontrados, eram conduzidos ao pequeno castelo, onde, diante do rei, os poetas eram obrigados a colocar a língua de fora, para ser cortada pelos algozes. Não se sabe bem o modus operandi de todo aquele procedimento, porque este texto não nos quis revelar, mas o que se sabe é que, um a um, os poetas ficaram sem o poder da fala.

Ao fim de algum tempo, o rei zarolho constatou que os mesmos, afinal, não precisavam das línguas para construir versos, pois tinham passado a escrever o que antes apenas diziam. O poderoso monarca mandou, então, arrancar as mãos de todos os que escreviam os sons que antes falavam.

Depois começou o estranho fenómeno. Sem língua e sem mãos, os poetas resguardavam-se perto das coisas inefáveis, como o pôr-do-sol, ou para assistirem a um instante deslizar de uma gota de orvalho numa pétala da flor. A população, vendo tal estranho encontro, procurou observar aquele estado de beleza dos poetas. O rei, apercebendo-se do perigo, e farto de poesia, resolveu com um decreto-lei todos os seus problemas. Em nome do seu olho perdido, ordenou, alegando que era o melhor para o progresso da terra, que fossem retirados os olhos da população. Por isso, ainda hoje se ouve dizer um ditado, que veio de tais estranhas paragens: em terra de cegos quem tem um olho é rei.

Mas esta história não termina aqui, porque o texto assim nos quis dizer. Segundo parece, uma vez toda a população cega, o rei começou a ter graves problemas, sendo ele o portador do único olho, ou seja, da única visão do reino, ao descrever as suas experiências, decisões e observações aos súbditos cegos, teve a necessidade de explicar o que via. Construía-se uma estrada, tinha de descrever uma montanha, sem recorrer à visão que não tinham, mais à junção de imagens que ainda possuíam; para construir uma ponte pedia-lhes para juntarem as descrições e as imagens criadas durante a construção da estrada, à audição da corrente e do frescor do rio. Assim, sem se aperceber, o rei não se desfez dos poetas, mas abriu, sem saber, a sua escola de imagens. Tornando-se, ele próprio no maior e melhor mentor de poetas do mundo. Por isso, e desde então, o velho ditado, que nos chegou de tão estranhas paragens, acabou por ser alterado, e em vez de ser em terra de cegos quem tem um olho é rei, chegou até nós um outro dizer: em terra de cegos quem tem um olho, afinal, é poeta

Carlos Vaz (Carlos Rodrigo da Silva Vaz) nasceu em Caminha, Portugal, a 21 de Junho de 1970. É o autor da Trilogia da Experiência: A Casa de Al'isse, Seres de Rã e o romance premiado pela crítica Capricho 43. Para além destas obras, é ainda o autor do livro de poesia Laivo e do ensaio Diários de um Real-Não-Existente, entre outros. Recebeu o Prémio Vergílio Ferreira (Gouveia) em 2005 pelo ensaio Diários de um Real-Não-Existente e o Prémio Literário António Paulouro (Fundão) em 2006 pela obra Capricho 43.

Obra Literária
Poesia
 2000 - "Laivo" (poesia)
Prosa
 2002 - "Seres de Rã": I - Trilogia da Experiência (Ed. Labirinto\romance)
 2004 - "A Casa de Al'isse": II - Tril. da Experiência (Ed. Labirinto\romance)
 2007 - "Capricho 43": III - Tril. da Experiência (Ed. Labirinto\romance), Prémio Nacional de Literatura António Paulouro - 2006
 2009 - "O Estrangulador de Bonecos de Neve" - Curtas I (Ed. Labirinto\microcontos)
Ensaio
 2005 - "Diários de um Real-Não-Existente" (ensaio), Prémio Nacional de Literatura Vergílio Ferreira - 2005
Crónica
 2007 - "Tricotadeira de Ariadne" - Minotauro - Folha de Intervenção Artística.
 2010 - "A Coisa Crónica" - Jornal "Artes Entre as Letras".
Antologias em que participou
 1998 - "Do Fingimento que Somos" (Autores de Braga\poesia).
 2004 - "Isto é Poesia" (Ed. Labirinto\poesia); "Histórias para um Natal" (Ed. Labirinto\conto).
 2005 - "Afectos" (Ed. Labirinto\poesia).
 2006 - Revista "Saudade8" (Edições do Tâmega\poesia).
 2007 - "Afectos - Mulher" (Ed. Labirinto\poesia); "Afectos - Liberdade" (Ed. Labirinto\poesia); "Um Poema para Fiama" (Ed. Labirinto\poesia); "Las Palavras Puedem" (Panamá-UNICEF\conto); "Dez Anos de Solidão" (Ed. Labirinto\ com conto para a obra do poeta Daniel Gonçalves); "Afectos - Natal" (Ed. Labirinto\conto).
 2008 - "Um poema para António Ramos Rosa" (Ed. Labirinto\poesia); "Afectos - Amor" (Ed. Labirinto\conto).
 2009 - "Os dias do Amor” (Ministério dos Livros Editores\poesia).
 2010 - "O Prisma de Muitas Cores" - Antologia de Poesia Portuguesa e Brasileira (Ed. Labirinto\poesia).

Espaços do Autor:
Página Pessoal: http://site.carlosvaz.pt/
Blog Textualino: http://www.carlosvaz.blogspot.com/
Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Vaz
Revista de Artes, Textualino: http://revista.textualino.com/

Data de entrada no TriploV: 18 de Março de 2011