CARLOS DE OLIVEIRA

Manuel dos Santos Alves:
Uma abelha na chuva da Mudança
ou a intersecção dos paradigmas

Creio que todas as estéticas me influenciam e influenciaram – e porque não? Mal vai o escritor que transforma o seu processo literário em dogma e desdenha e se recusa discuti-lo. A Literatura, como tudo o mais, caminha com os tempos; o que hoje parece eficaz, deixa de o ser no dia seguinte, visto que as coordenadas mudam,
visto que «o mundo é mudança»

Fernando Namora, in DN, 5/2/89, pp. 5-6

Como sugere o título deste trabalho, vamos debruçar-nos sobre dois escritores que têm já poiso assegurado no Panteão das Letras. Um e outro são hoje os grandes referenciais de uma abundante bibliografia passiva e mesmo de teses universitárias (cf. A.A. V.V., 1982; 1989b; Reis, 1983; Godinho, 1985; Santos, 1987; Laso, 1989; Goulart 1990). Não lhes arrancarão estas, com toda a certeza, uma lasca sequer do monumentum aere perennius, apesar do melancólico aposto – com sabor a auto-exorcismo –, do Prof. Lázaro Carreter, «triste e gloriosa servidão dos grandes criadores idiomáticos» (apud Laso, 1989: 13).

Tal consagração retiraria pertinência ao presente estudo, se a imortalidade de um escritor tivesse o estatuto da múmia fossilizada. Ora a verdade é que ela pressupõe uma potencialidade quase infinita de leituras diferentes: umas plausíveis, enquanto metatextos escorados em hermenêuticas correctas; outras anárquicas, que se servem do texto como um pretexto e são impostas, quer por códigos extraliterários, quer pelo delirium tremens de imaginações exacerbadas e de criações individuais que se instalam, como parasitas, em nomes alheios já feitos, por não terem a coragem de se auto-assumir; outras, enfim, relevam das estéticas da recepção e da produção, sobre determinando, por nexos intertextuais e interdiscursivos. o aparecimento de novas obras artísticas. É de todas elas que o escritor vive, quer ante, quer post mortem, umas vezes mais ante, outras vezes mais post. Da segunda espécie de leituras, o escritor não terá mais a esperar que uma existência efémera e manipulada. Quanto às outras duas, se é sobretudo pela primeira – a chamada crítica literária –, que o escritor vive em quantidade, é pela terceira – a do universo estético de obras originais –, que ele vive em qualidade. É também o estudo desta última que se torna mais complexo.

Tanto quanto sabemos, está ainda por dissecar o problema da recepção literária de Vergílio Ferreira em Carlos de Oliveira, o primeiro conotado com o paradigma existencialista, o segundo com o paradigma neorrealista. Supomos chegada a hora de rever a questão, cujo estudo poderá lançar alguma luz sobre a fenomenologia da evolução literária, bem mais complexa do que o simplismo de certas nomenclaturas e dicotomias possa pressupor. Estudo tanto mais necessário, quanto ele é indissociável da Literatura Comparada, cujos objectivos implicam uma adequada identificação das várias literaturas nacionais, e esta só pode conseguir-se mediante o rastreio das grandes dominantes que as caracterizam e distinguem umas das outras, conferindo-lhes o estatuto de termos de comparação recíproca. Ora entre as grandes dominantes que marcam a nossa literatura, contam-se os nexos temáticos (como o tema da saudade), mitológicos (como o mito de D. Sebastião) e dialógicos (como a questão das fontes, das influências e das transformações intertextuais), que, dando consistência e carácter entitativo à nossa praxis literária, lhe possibilita o confronto com as literaturas estrangeiras, às quais, sempre, aliás, se manteve aberta, sem contudo abdicar dos códigos temáticos, literários e retóricos que lhe marcam uma tradição plasmada e sedimentada ao longo dos séculos.

De resto, não poderia passar despercebida à crítica responsável a ocorrência do quadragésimo aniversário da publicação de Mudança de Vergílio Ferreira (1). E isto, por dois motivos, a nosso ver, fundamentais: a actualidade do romance e a revolução que provocou no panorama da literatura portuguesa.

1. A ACTUALIDADE DO ROMANCE

Uma das características que nos parecem mais relevantes na obra literária de Vergílio Ferreira é, sem dúvida, uma actividade pensante, intensa e arguta. Para além do seu valor estético, ela impõe-se como uma tribuna, um «espaço agónico», que não passou despercebido a Gavilanes Laso (1989: 162-163), e em muito faz lembrar o teatro de Eurípides. Mas, por detrás de um sistemático questionamento efectuado através da bipolarização dialógica das personagens, que se debatem e debatem os grandes problemas da existência, esconde-se algo mais: aquilo a que poderíamos chamar uma pedagogia da reflexão e que tem muito a ver com os diálogos platónicos. Em Vergílio Ferreira, para além de se aderir ou não à mensagem, aprende-se muito a reflectir. Ora esta qualidade, saliente já em Mudança, reveste-se de particular importância nestes complexos tempos da chamada pós-modernidade (2), ou seja, «le temps de l'incrédulité à l'égard des métarécits (Lyotard, 1979:7). A fragmentação e a «derrota do «pensamento» (Finkielkraut, 1988) convivem com o pensamento da derrota e a desconfiança, se não a impugnação das grandes metanarrativas, defendidas com desespero por filósofos como Habermas (1988), que, inconformados com o relativismo cultural, não abdicam dos «projectos por concluir», inscritos nos metadiscursos de matriz iluminista e suas pretensões à universalidade. Mas tal paradigma tem desencadeado ideologias totalitárias dos mais diferentes matizes, que a História, já desde Heródoto a grande mestra da vida, tem responsabilizado pela perversão e a guerra das linguagens, pelos holocaustos, enfim, pela morte do homem. Quanto ao progresso, em nome do qual esses totalitarismos se pretendiam autolegitimar, é hoje sabido que o conceito dele não foi aprofundado mas – com boa ou má consciência –, manipulado como um mito. Assim, a filosofia das Luzes acabou por encurralar a Humanidade num impasse, em que já nem sequer é fácil distinguir o excesso de limites, da ausência deles. A desconfiança perante as grandes mensagens que caracterizam esta era «du soupçon» (N. Sarraute) conduzem à fragmentação cultural. Vivem-se «as aventuras da diferença», sob o signo do «pensamento débil», numa «ontologia do declínio» (Vattimo, 1988). Nota-se sobretudo uma crise de valores, uma falta de bússolas e a vertigem do precipício. É que, se parece já adiado ou já menos iminente o perigo de uma catástrofe, há outros riscos muito preocupantes, que o cultural-consumismo de matriz mediática nos dispensa de concretizar e têm revocado a proliferação de uma literatura apocalíptica (cf. AA.VV., 1986).

A este propósito, julgamos mesmo digna de atenção a nova leitura que, do mito de Prometeu, fez um filósofo pessimista de origem romena e de expressão francesa. Cioran amaldiçoou Prometeu e disse bem da águia:

«Premier zélateur de la «science», un moderne dans la pire acception du mot, ses fanfaronnades et ses délires annoncent ceux de maint doctrinaire du siècle passé: ses souffrances seules nous consolent de tant d'extravagances. L'aigle, voilà quelqu'un qui a compris et qui, devinant notre avenir, voulu nous en épargner les affres. (1987:128)

Não deixa de ser bem elucidativa esta reinterpretação do mito, embora cingida ao domínio da consciência – e também, por isso mesmo, a um nível muito mais profundo –, que o Titã deu aos mortais como um presente envenenado, para os privar dessa aurea aetas que seria a pureza genesíaca dos tempos mitológicos, dessa «hébétude bienheureuse du premier jardin» (ibid., p. 126). Aliás, é precisamente pela recusa dessa mensagem iluminista da modernidade, que se tem afirmado um outro tipo antagónico de modernidade – a modernidade estética (3). Já, pelo menos, desde Baudelaire, que se acentua e aprofunda o fosso que separa os dois conceitos, num radical dissídio entre o indivíduo criador e a sociedade apelidada de «burguesa», termo cuja conotação pejorativa apenas é igualada pela de «filisteu» em escritores como Heine, Flaubert, Leconie de Lisle e Eça de Queirós. Daqui também a valorização da antiguidade greco-latina, entendida como um referencial de valores estéticos e espirituais, que a outra modernidade – a do progresso material e científico –, desprezava.

Neste contexto, poder-se-ia afirmar, sem incorrer em rótulos fáceis, que o romance de Vergílio Ferreira é simultaneamente uma obra moderna e pós-moderna: moderna como realização estético-literária: pós-moderna, enquanto nela se questionam «evidencias» tidas como dados adquiridos e, como tais, «indiscutíveis», ou «soluções» demasiado fáceis e simplistas – umas e outras inscritas nas grandes interdiscursividades de matriz hegeliana e marxista. É aqui que reside, segundo pensamos, um dos títulos maiores da sua actualidade.

«Que é o progresso? – meditava Carlos contra as evidências do irmão – Onde a perfeita justiça, mesmo deste instante breve? Que é a glória verdadeira?, a desonra verdadeira? Que são os outros? eu? Onde o limite do meu sacrifício? Do meu proveito? Que é a verdade?» (p. 154); «Como abrir-se um homem a uma ideia, atirar-se a uma acção, se sabia que tudo era provisório?» (p. 152).

2. REVOLUÇÃO NO PANORAMA LITERÁRIO PORTUGUÊS

O romance de Vergílio Ferreira constitui uma espécie de revisão, um acertar de agulhas em relação à carreira do escritor e uma pedrada no charco de certa praxis literária. Embrayeur daquilo a que Liberto Cruz viria a chamar uma «viragem no romance português» (1970: 616-632), favoreceu o eclodir, na segunda metade deste século, de uma literatura emancipada ou «desenvolta», para usar o consagrado epíteto de Eduardo Lourenço. Mas o seu impacto não se traduziu apenas na abertura de novos horizontes a uma geração que, se havia perdido os paradigmas da infância, também se não podia rever no maniqueísmo marxista, nem muito menos naquela espécie de religião de estado a que Estaline o guindara. Neste aspecto, Vergílio Ferreira foi, juntamente com Eduardo Lourenço (sobretudo o da Heterodoxia de 1949), o grande desbravador do espaço plural da polis lusa e também com ele imprimiu ao ensaísmo português uma outra dimensão, uma outra finura e criatividade, que não cabiam no racionalismo geométrico de António Sérgio, apesar do valor da sua obra ensaística.

Para além destes resultados, o romance Mudança de Vergílio Ferreira teve enormes repercussões no seio do próprio movimento neorrealista. Não lhe será alheia a distância que vai do Fernando Namora do Fogo na Noite Escura (1943), da Casa da Malta (1945) e dos Retalhos da Vida de um Médico (1948), ao Fernando Namora de O Homem Disfarçado (1957), da Cidade Solitária (1959) e de Domingo à Tarde (1962). É, porém, sobre a obra-prima de Carlos de Oliveira que vamos concentrar a nossa atenção, pois trata-se de um referente quase único, do escritor a cujo nome mais se tem recorrido, como prova da maioridade estética daquela tendência literária. Ora, a análise comparativa que fizemos de Uma Abelha na Chuva (1953) com Mudança de Vergílio Ferreira, obra publicada quatro anos antes (1949), revela todo um leque de coincidências que, embora já de si interessantes, transcendem o simples plano da homologia, para se inscreverem no princípio da causalidade e no dialogismo intertextual. Entre as principais, podem salientar-se as que se agrupam nos tópicos seguintes: valorização do símbolo, recuperação da subjectividade e caracterização das personagens.

2. 1. Valorização do Símbolo

A começar pela carga simbólica do título, Uma Abelha na Chuva representa um salto qualitativo em relação à trilogia da Gândara, Casa na Duna (1943), Alcateia (l 944) e Pequenos Burgueses (1948), romances ainda demasiado localizados e circunscritos ao esquematismo ideológico da escola. A partir daquela obra-prima, os códigos ideológicos do neorrealismo são cada vez mais remetidos, em Carlos de Oliveira, para um plano de fundo, até se ocultarem numa «escrita embaciada», expressão do próprio escritor, que não passou despercebida a Maria Alzira Seixo (1976: 146-149), e viria a atingir a máxima complexidade em Finisterra, Paisagem e Povoamento (1978), obra que a crítica – alguma pelo menos –, considerou como uma espécie de certidão de óbito da escola. Júlio Conrado, por exemplo, fez a seguinte observação no Diário Popular, transcrita pelo semanário Expresso, de 17/2/1979: «Levar a autodestruição do neorrealismo às últimas consequências terá sido o projecto de Carlos de Oliveira? O neorrealismo moribundo precisaria deste golpe de misericórdia para ser considerado oficialmente morto? Finisterra é 'aharakiri' ou eutanásia questões que a leitura do livro, sem rebuço, levanta».

Mas esta ruptura só poderá ser devidamente entendida, se for estudada em relação com uma outra que a precedeu e foi operada por Mudança de Vergílio Ferreira, obra que se demarca nitidamente das anteriores publicações: O Caminho Fica Longe (1943), Onde Tudo Foi Morrendo (1944) e Vagão J (1946). É evidente, neste romance, a função primacial concedida ao símbolo como já notou Eduardo Lourenço (1978: 9-24). Ora, entre os vários símbolos, como por exemplo, o uivar dos cães «suspensos de angústia», salienta-se o símbolo da chuva, que constitui a abertura do romance (p. 29):

Chovera. [...] uma tempestade velha caíra sobre a aldeia com uma carga de dilúvio. [...]. Uma cólera surda rugia ainda nas águas da ribeira, sobre a terra inundada, pairava ainda no céu a ameaça de cinza...

O que interessa salientar nesta tempestade cósmica, nesta fúria elemental, não é tanto o seu aspecto descritivo, mas sobretudo a sua função simbólica, como antecipação indicial, premonitória do conflito das personagens, sobretudo o sempre malavindo casal Carlos/Berta. Mas a chuva não se limita ao início da narrativa: prolonga-se ao longo dela, tal como se prolonga o conflito, a apontar simbolicamente para ele, como um deíctico ou um leit-motiv. Pouco tempo depois de casar, Carlos, corroído pelo drama interior,

erguia-se a medo, olhando em roda os restos da derrocada. E onde punha os olhos descobria o rasto daquela fúria sem razão. Vinham-lhe à lembrança as enchentes das Ribeiras de Vilarim, que, ao pretexto de magras chuvas, inchavam de ira, rolavam serra abaixo, arrasavam tudo. (p. 53, subl. nosso)

Desta maneira, Carlos, tal como Berta e outros personagens menores, todos joguetes – conscientes uns, inconscientes outros –, dos ventos da «mudança», surge como uma daquelas «abelhas na chuva», que viriam o povoar o romance de Carlos de Oliveira, cuja acção começa «numa tarde invernosa de Outubro», talvez só para não começar, com idêntica marca meteorológica, no «fim de Setembro» (Mudança), o que tornaria a coincidência demasiado flagrante. Para o «favo de mel», é certo, muito contribuiu a mensagem de Afonso Duarte, a começar pelo título, e o próprio Carlos de Oliveira nos elucida sobre isso (1971: 248-259). Mas que, nessa colmeia kafkiana de angústia e de absurdo, em que vive o casal Álvaro Sivestre/Maria dos Prazeres, também é visível o dedo de Vergílio Ferreira e seu par Carlos/Berta – dificilmente poderia negar-se. Bastará confrontar os dois pormenores seguintes.

Álvaro Silvestre, de alma em farrapos, tenta afogar no brandy o seu conflito, e entrega-se, alheado das visitas, à corrente do monólogo interior:

O padre Abel perguntou-lhe:
– E a saúde, que tal vai?
– Indo, elucidou sucintamente, a encher de novo o cálice.
Maria dos Prazeres, no entanto, alargou a brevidade da resposta a proporções mais educadas:
Um pouco deprimido. Também o tempo não ajuda.
– Um Outono sisudo, com efeito.
– Pois se eu que tenho os nervos sãos não ando bem, é claro que o Álvaro há-de ressentir-se. (pp. 43-44; subl. nosso)

Vejamos agora o seguinte passo de Mudança de Vergílio Ferreira. Depois de uma altercação, em que a gélida ironia da Carlos mais exasperava o histerismo de Berta, o casal recebe a visita do engenheiro Raul:

– Viva, doutor! Então? E a Dona Berta como passa? Acho-o abatido.
– Sente-se. Não, não. Sente-se o meu amigo. Estou bem de pé.
Encostou-se à secretária, bateu um cigarro no tampo:
– Desculpe minha mulher não aparecer. Um pouco incomodada.
– Coisa de cuidado?
Dor de cabeça, maldisposta. O tempo não ajuda.
– Oh! Este tempo impossível. Não imagina, em Lisboa, um sol de Primavera.
E ambos compararam esse sol distante de Primavera com a chuva peneirada, para lá da janela, a toda a largura do horizonte. Um céu escuro pousava sobre as bordas da serra como um tampão. (pp. 176-177; subl. nosso)

Para além das óbvias diferenças, não deixam de ser flagrantes as coincidências. Em ambos os casos, a situação é enquadrada pelo motivo da(s) visita(s) e precedida de um episódio conflituoso, numa íntima associação entre o tempo meteorológico e o estado psicológico das personagens. E, como exorcismo à «folle du logis» que nos habita, lá comparecem as emergências fenotextuais e a transmigração dos significantes. Bastará relacionar a resposta de Dona Maria dos Prazeres – «Um pouco deprimido. Também o tempo não ajuda» –, com a de Carlos Bruno – «Dor de cabeça, maldisposta. O tempo não ajuda»; a expressão do estado físico de Berta, aparece em Carlos de Oliveira substituída pelo sintagma «Um pouco deprimido», que foi por sua vez decalcado num outro muito semelhante, «Um pouco incomodada», de Mudança, como vimos. O mais importante, neste aspecto, nem é a ocorrência de estruturas e sintagmas idênticos ou semelhantes: eles podem remeter para a fenomenologia da interdiscursidade ou discurso socializado, numa comunidade de falantes. Não: o que imprime uma significância intertextual ao uso desses sintagmas ou estruturas, é o modo similar como aparecem contextualizados, isto é, associados sintagmaticamente no texto primeiro e no texto segundo.

Estes pormenores lançam luz sobre a perspectiva holística. Ao longo de todo o romance, a chuva aparece metonimicamente associada aos personagens, sobretudo a Álvaro Silvestre. É, dos seus conflitos, não só um símbolo, mas um elemento caracterizador, quaisquer que sejam as metamorfoses que revista, quer em si mesma, quer no elemento fundamental a que pertence: a água. Ora isto é novo em Carlos de Oliveira. A água apenas aparece em Pequenos Burgueses, a partir do cap. IV, sob a forma de chuva, como elemento fecundante da terra e de cuja abundância ou carência depende a sobrevivência dos habitantes da Gândara; nos romances seguintes, está ausente; quanto à obra poética, a presença da água, que não passou despercebida a Eduardo Lourenço (1968: 180-184), pouco tem a ver com a função que ela desempenha em Uma Abelha na Chuva. Neste romance, e sobretudo como tempestade, a chuva realça, pelo contraste, o conforto do abrigo. Mas é também um longo silêncio líquido. Mormente, para um «doente, com ideias estranhas», a quem o médico prescreve» repouso e distracções» (p. 17): prolonga-lhe a solidão, favorece as longas «rêveries» e ruminações do monólogo interior, essa dantesca «descida aos infernos», lá onde se presta culto às Erínias do medo e da cólera, do remorso e da vingança, onde se cava a ruína do outro e a ruína de si mesmo. Foi preciso que o escritor atribuísse muita importância a esse elemento simbólico, para o inserir na título e lhe dar honras de paratexto; e, quem pretender aprofundar a unidade da narrativa, não poderá prescindir dessa espécie de refrão ou líquido leit-motiv, sobretudo na sua forma de tempestade, palavra-chave do universo simbólico da narrativa, marcado pelo conflito e a agressividade: «tarde invernosa» (p. 1), «tempo desabrido» (p. 2), «num côncavo... tempestuoso» (ibid.), «Forte aguaceiro. Estala. [...]. – Boa bátega» (p. 17), «cordas de água fumegante» (p. 18), etc. Esta atmosfera tempestuosa mantém-se ao longo da narrativa, numa espécie de crescendo, até atingir o seu clímax no final, com a liquidação física do Ruivo e a tentativa de ocultar o crime nas torvas águas do oceano. A tempestade é mais que um símbolo: é uma espécie de personagem, confidente e/ou ameaçadora, uma personagem-outra. dupla da(s) personagem(s), cuja conflito simboliza.

Mas o primeiro romancista a dar à chuva um tal tratamento, uma tal consistência simbólica, não foi Carlos de Oliveira: foi Vergílio Ferreira. Tanto o Carlos Bruno de Mudança, como o Álvaro Silvestre de Uma Abelha na Chuva se comportam em relação simbólica com a chuva, nas suas diferentes metamorfoses.

A título de exemplo, confrontemos os dois passos seguintes:

O montão de trovoadas instalara-se sobre a vila, atormentara-a uma hora e abalara enfim. Pouco a pouco, a chuva serenou. Caía agora docemente, sem furor, natural. Das brechas da cordilheira, vinha o cansaço do enxurro. Cordas metálicas de água vibravam do telhado ao pátio. Carlos estendeu o braço e a chuva empoçou-lhe, gostosamente, na concha da mão. (V. Ferreira, p. 94; subl. nosso)

podia erguer a cabeça tombada para fora da janela, virar a cara para o céu e beber daquela frescura suspensa pelo espaço; voltou-se com dificuldade e a moinha da água bateu-lhe ao de leve na fronte, nas pálpebras fechadas, foi-se acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lábios; abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça (ora da janela, a boca aberta n apurar a., goteiras do telhado. (C. de Oliveira, pp. 67-8; subl. nosso)

Como se pode ver, em ambos os casos, a personagem interioriza a chuva, numa espécie de osmose, como se nela se quisesse autodissolver. Sente por ela uma atracção íntima, um hidrotropismo, a que se poderia chamar, com Bachelard, «psychisme hydrant» (1978:8). Com efeito, para esse filósofo da imaginação material dos quatro elementos, a água é «un destin essentiel qui métamorphose sans cesse la substance de l'être», assimilando-a ao seu próprio destino, que é a morte:

«L'être voué à l'eau... meurt à chaque minute, sans cesse quelque chose de sa substance s'écroule. [...]; la mort quotidienne est la mort de l'eau. L'eau coule toujours, l'eau tombe toujours, elle finit toujours en sa mort horizontale» (ibid., pp. 8-9).

Mas, em relação a Álvaro Silvestre, o símbolo da água não sublinha mais que a situação psicológica: esta mantém-se no impasse, igual a si mesma, numa espécie de estagnação total, embora transformando os outros em inocentes vítimas, em «abelhas na chuva». Já em Mudança, pelo contrário, ela sugere mais a filosofia do devir e remete, por detrás do verso de Camões que lhe serve de exergo –, para a ideia do Buxo, ou concepção, diríamos, pantarreísta da vida, que Platão atribui a Heraclito, no Crátilo (402 A): p£nta ∙e‹, tudo corre; ou, mais desenvolvidamente, lšgei pou Hr£kleitoj Óti p£nta cwre‹ kaˆ oÙdšn mšnei, kaˆ potamÕn ∙oÍ ¢peik£zwn t¦ Ônta lšgei æj dˆj ™j tÕn aÙtÕn potamÕn oÙk ¥n ™mba…hj (apud Kirk-Raven, 1982:188 e 199); quer dizer: tudo muda, nada ficava como dantes – diz algures Heraclito; e, comparando os seres ao fluir da corrente, acrescenta ele que ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio.

Não será impertinente este aprofundamento, pois estamos perante um pensador, formado em Filologia Clássica, que leu Platão. Assim se compreende que o lexema paratextual do título apareça tanta vez repetido ao longo do texto, quer pelo narrador, quer pelo herói Carlos Bruno. Ora essa matriz hídrica, essa espécie de madre do imaginário ocidental, se não do imaginário tout court, aparece já, desde o fundo dos séculos, em íntima associação metonímica com a mobilidade da vida e da existência. E, quando se trata de violência, é a tempestade que melhor a simboliza, qual «murmúrio longo, resfolegado, vasto como o oceano» (p. 29). Bachelard, citando Balzac, é muito claro:

«il y a correspondance, au sens swedenborgien, entre la vie d'un élément en furie et la vie d'une conscience malheureuse.[...]. Faut-il souligner qu'une tempête extraordinaire est une tempête vue par un spectateur dans un état psychologique extraordinaire ? Alors vraiment il y a de l'univers à l'homme correspondance extraordinaire, communication interne, intime, substantielle» (1978: 232-233).

Como é óbvio, a simbologia da água não se restringe, nos dois escritores, a uma só personagem, mas a várias e aos vários estados psicológicos da mesma personagem, metamorfoseando-se de harmonia com umas e outros.

Primeiro, a fonte brotou tenuemente, muito longe, na infância; depois, a água mansa turvou-se ao longo do caminho, do tempo, com o lixo que lhe foram atirando das margens; e agora é cachoante, escura. desesperada. (C. de Oliveira, p. 20)

Não é, contudo, sob a forma de tempestade que o símbolo melhor se adapta à fragilidade psíquica de Álvaro Silvestre, personagem viscosa, em decomposição, em ruína; mas antes sob a forma de «morrinha» (p. 31), de «orvalho» (pp. 67 e 86), de «moinha» (ibid.), de «poeira húmida» (p. 68), de «névoa.. aquosa e fina» (p. 89). Combinada com a terra, aparece metonimicamente grudada à personagem de Álvaro Silvestre, como ao barro do oleiro. ou como à terra seca, para formar lama. E não é por acaso que o marido de Maria dos Prazeres surge, do início ao termo da narrativa. física e moralmente enlameado: «As tuas botas, homem ! – repreende-o a mulher, que lhe resume a viagem a Corgos, em termos de «duas léguas de lama, a corta-mato, na iminência do temporal» (pp. 16 e 17). Enfim, um atoleiro, um «lamaçal» (p. 30), em que se enterram cada vez mais as botas e a vida da personagem: «botas enlameadas» (pp.) e 16), «chapadas de água enlameada» (p. 20), «campos molhados» (p. 85), «coberto de lama» (p. 101).

2. 2. Recuperação da Subjectividade

Num artigo cheio de interesse – até pelo desassombro com que proclama recusadas evidências –, diz Maria da Glória Padrão (1989: 13), a propósito da topografia literária de Marmelo e Silva:

Outros críticos o colocam às vezes sem justificação também no neo-realismo, mas não importará muito qualquer justificação: a critica marxista entre nós, salvaguardadas as excepções que há sempre, baseou-se particularmente na economia (mais do que na sociologia) e o binómio rico-pobre é empirismo de fácil entendimento. E se a crítica marxista, tanto nos seus fundamentos como nos seus métodos, tem outros pressupostos e caminhos, entre nós tudo se resolve com magnífica simplicidade e candura.

A cosmovisão marxista centra-se no uno e não no múltiplo. O múltiplo não existe. O que existe é o duplo, mas apenas transitoriamente, enquanto da tensão dialéctica entre os pólos da dicotomia não resultar a eliminação de um deles. O plural não tem declinação possível na gramática marxista. A utopia só se declina no singular, e a realidade no dual. Os verbos nem sequer se conjugam: são impessoais, pois não têm sujeito. Este é absorvido no eu social e apenas existe como objecto de negação ou realidade a eliminar. Esta concepção tem sido criticada como um maniqueísmo simplista: a dialéctica da História não se esgota na dicotomia opressor/oprimido; nem a História se esgota na dialéctica de si mesma. Por outro lado, os pólos da dicotomia, o eu e o outro, não são seres monolíticos: «um dia, o homem dividiu-se, isto é, pensou» – disse Vergílio Ferreira (apud G. Laso, p. 162). A esquisofrenia – não na acepção psicanalítica, freudiana, mas no sentido primitivo, etimológico do termo –, é-lhe consubstancial. As lutas sociais não se travam apenas fora do indivíduo, mas também dentro dele: são muitas vezes uma repercussão no exterior, de conflitos íntimos; o caso de Álvaro Silvestre é, neste aspecto, paradigmático. Depois do relativismo de Einstein, da psicologia de Freud e das teses de Lacan, depois de Kierkegaard, Heidegger e Sartre, depois da modernidade estética de um Dostoiewsky de um Proust, de um James Joyce, de um Fernando Pessoa, de um Raul Brandão ou de um Kafka, a noção etimológica de indivíduo como indiviso representava um retrocesso, por muito que a chamada realidade objectiva se impusesse à consideração e à voluntariedade generosa das consciências. Desta desvalorização do subjectivo, desta redução da consciência individual à consciência social, se ressentiu o neorrealismo, cada vez mais normalizado por uma retórica estereotipada de «luas, searas mais ou menos vermelhas, auroras de esperança» (E. Lourenço, 1978:21), a emoldurar o programa de combate social. Aliás, que esse movimento era a expressão literária do PCP, é realidade que nem os seus próceres contestam, muito embora se não tenha restringido aos seus militantes. E, quanto a defeitos e limitações, até críticos como um Óscar Lopes e um António José Saraiva os viriam a apontar (1975: 1108-1112).

Contra esta obsessão ideológica, se insurgiu Vergílio Ferreira, ao recuperar para a literatura o domínio da subjectividade, que a reacção antipresencista havia posto entre parênteses. Sem eliminar o plano da realidade objectiva, das lutas sociais e das transformações económicas, dele se serve, contudo, para enquadrar histórica e sociologicamente as meditações existenciais de Carlos, em vários aspectos uma projecção autobiográfica do próprio escritor. Não chega a ser abolido um certo paralelismo entre os dois planos – o ob-jectivo e o sub-jectivo –, mas o primeiro tem mais uma função ancilar relativamente ao segundo. Ele é já em si de algum modo desvalorizado, ao ser descrito de maneira abstracta, hiperbólica e expressionista, qual mítico monstro sofocliano, pronto a estrangular quem não for capaz de lhe resolver os enigmas. Assim é apresentada a crise norte-americana de 1929, com suas repercussões e suas vítimas, que, qual esfinge sem Édipo, «de fundos remotos, inexorável e cega,... avançava sobre as cidades, os povoados» (p. 47); assim é sugerido o eclodir e o termo da Segunda Grande Guerra, «essa força» que «nasceu, entrou por ele dentro, dobrou-o algum tempo depois», anunciada «ao mundo por milhões de vozes» (p. 129); assim são também sugeridas pelos ecos vagos do reservado Pedro, as lutas clandestinas contra o regime, marcadas pela ideologia marxista-leninista. Mas, para além desta desvalorização pelo recurso à representação abstracta, simbólica e mítica, a realidade objectiva é relegada para um plano secundário, para dela emergir a problemática do eu, os conflitos íntimos dos personagens, do casal Berta-Carlos, sobretudo de Carlos, herói na verdadeira acepção do termo, que se eleva acima da vulgaridade e da cobardia do meio, que não faz concessões, nem a oportunismos, nem a maniqueísmos fáceis, que se recusa, ao contrário do seu irmão bastardo, avatar de uma bastarda ideologia, a «ler absoluto no relativo» (p. 157), em defesa de uma coerência, que o vai isolando cada vez mais, da esposa, da família, e da sociedade, como um ser-para-a-morte, «dividido entre si como vida absoluta e absoluta morte dessa vida» (E. Lourenço, 1978: 23). Há passos muito elucidativos sobre a situação trágica e sua visão existencial: «A exacta realidade era a nudez aberta do seu abandono, a impossibilidade de retorno a certezas falidas na boca de toda a gente» (p. t4); «...Bruno era o único dos quatro que não mudara claramente de pele» (p. 141); «Só e nu. E, por dentro. aquela fome a comê-lo. Outra vez a fortuna o abrira de alto a baixo. De braços caídos, Bruno esperava que qualquer vento de acaso lhe lançasse dentro uma semente de verdade. Sentar-se à borda da vida e vê-la apenas passar era o suicídio mais cobarde, porque mantinha a aparência de não ser suicídio» (p. 141). As propostas utópicas do bastardo, contrapunha ele:

Que ficava para o homem? Um homem não é as evidências dos outros. É só e absolutamente a sua própria evidência. O egoísmo do après moi le déluge era decerto uma fatalidade. Se o deus agora era o homem, era-o também ao menos no sonho do sem-fim que desconhecia a morte. Da dimensão divina ficava ainda no homem o signo da eternidade:
– Essa é, meu caro, a condição do nosso esforço: fundá-lo na certeza ou seja no para-sempre. Se sabes que não lutas para uma verdade decisiva... ou lutas?
– Não.
– Então... então porque te não enforcas? Ou porque não és um salteador de estrada?
(pp. 151-152)

É esta «compreensão mais visceral e trágica da vida e da história» que faz de Carlos «a antítese do herói neorrealista», «um herói existencial», «corroído por um desespero vital e sem remédio» (E. Lourenço, 1978: 15-16). Um e outro herdaram algo dos míticos «irmãos inimigos», dos desavindos filhos de Édipo e representam de algum modo a trágica cisão que se operou na polis do século XX.

2. 3. Caracterização das personagens

Nota-se, nos dois romances, uma polarização classista das personagens: umas pertencem a estratos sociais elevados; outras ocupam a base da pirâmide. Estas agem; aquelas ruminam. A caracterização das primeiras decorre do largo espaço de subjectividade que os romancistas lhes concederam. O casal Álvaro Silvestre/Maria dos Prazeres (Uma Abelha na Chuva) está muito próximo do par Berta/ Carlos Bruno (Mudança), pelo conflito em que vive. E é muito sintomático que este conflito apareça resumido nos dois romances em termos de inequívoca relação intertextual. Assim, se, para Carlos, "O casamento... era uma muralha lançada à roda dos dois» (p. 56; subl. nosso), também a orgulhosa fidalga da Gândara exclama em monólogo interior, referindo-se ao marido e à desarmonia conjugal: "Quantas vezes o vira meter ombros, à muralha que ela erguia entre os dois» (p. 46; subl. nosso). Aliás, Maria dos Prazeres herdou muito de Carlos e aparece em situações muito semelhantes. Por exemplo: só, depois de se deitar, «Aconchegou aos ombros o peso dos cobertores e deixou-se arrastar àquele torpor em que ficava horas acordada, uma espécie de sonho lúcido, que a chuva tamborilando na janela trespassava» (pp. 80-81); também Carlos, «batido pelo desprezo do Clube, pelo silêncio das ruas» e pelos «lôbregos ventos da solidão», se enterrava na cama cedo, de cobertores às orelhas, ouvindo a tormenta em torno de casa. [...]. A chuva marrava contra as vidraças» (p. 207).

Em ambos os casos, a chuva, realçando pelo contraste, o conforto do abrigo, aparece como catalisador dos monólogos e rêveries dos personagens. De resto, as correspondências intertextuais podem ver-se melhor pelo nosso sublinhado. Não menos elucidativo deste dialogismo, desta recepção literária de Mudança em Carlos de Oliveira, é o seguinte passo em que Carlos Bruno, «cansado» da vida e suas tristes «recordações»,

gostava dessas horas sombrias com um sabor de invernos longos, de lume no fogão, de lendas escuras de serões. Era um prazer estranho, um gosto de irremediável desolação, de triste lembrança de qualquer perdida irrealidade, em noite sem fim com vidraças escorrendo água. (V. Ferreira, p. 54)

O mesmo se passa com Maria dos Prazeres, ao regressar do Montouro, sob a frialdade húmida da noite, sem «o calor» que lhe permitiria falar outra vez desafogadamente.

Passou de memória a sala do Montouro, com pinhas acesas no tijolo do lar, as conversas vagarosas, o grande candeeiro de petróleo... e ela que em geral se azedava no pasmo daquelas noites desejava-o agora de todo o coração... ao brando crepitar do lume. (C. de Oliveira, p. 31)

As relações intertextuais com o hipotexto de Vergílio Ferreira ressaltam, com suficiente clareza, quer no todo, quer nos pormenores dos passos transcritos, como se pode ver pelos elementos sublinhados. De resto, há outras afinidades não casuais, como os recalcamentos, que levam a fidalga a chicotear a égua e levam Carlos Bruno a soquear o engenheiro Raul. Mas é sobretudo com Berta que Maria dos Prazeres se parece. Tem dela o orgulho, o espírito prático e a infidelidade conjugal. Sente pelo Ruivo e pelo cunhado Leopoldino a mesma atracção de Berta por Raul e o cunhado Pedro. Utilizam-nos mesmo como confronto – afrontoso – contra os respectivos maridos. Exprimem-se de modo muito semelhante perante eles. «Não se trata de chicotear ninguém» – responde a burguesa de Vilarim (p. 175); «Mas não tenhas medo, Silvestre, podes insultar-me à vontade. Os mortos não empunham chicotes» – diz a fidalga da Gândara (p. 76). «Mas que duas» – diria o leitor que gostasse de parafrasear o Medeiros (cf. p. 18). Até na aparência exterior são muito parecidas. Se Berta surge diante de Carlos «soberana nos sapatos altos, com um vestido sério de veludo preto, selando-lhe o corpo até ao colo», as mangas estreitadas «para as mãos solenes, dadas à frente», «o cabelo... puxado da nuca», «magnífica e em glória», túmida de força represa» (cap. 21, p. 169) –, Dona Maria dos Prazeres aparece ao Medeiros, com «o vestido de veludo escuro», que se lhe afogara no pescoço», «as mangas enfunadas, vindo morrer aos pulsos na mesma alvura breve e nítida, donde a mão nervosa emergia longamente», «tudo aquilo» lhe ficando bem, «adelgaçando-a,... os cabelos... aconchegados num novelo espesso e entrançados sobre a nuca» e «a boca de lábios túmidos» (Cap. IIII, pp. 15-16; subl. nosso). Por isso, a presença delas produz efeitos similares nos personagens que as contemplam: Medeiros «avaliava-a com prudência: uma mulher de mão cheia sim senhor mas dura de roer»: Carlos, «deslumbrado e medroso», via a esposa assim vestida, «como uma virgem poderosa, carregada de ameaças e promessas» (alusão à mítica Esfinge?). Mas, a incompatibilidade conjugal, centrada, em ambas as narrativas, no motivo do orgulho e nas relações de domínio, é expressa pelos dois maridos, de modo muito similar:

«Antigamente – disse Bruno já cruel – exigias pouco. Aceitavas-te humilde, rasteira [...]. Agora, com dinheiro, posta no lugar de chicote – um chicote que não tiveste, Berta»... (p. 175)

Álvaro Silvestre, numa linguagem própria do seu meio e do seu nível, não é menos contundente:

«Muito conde, muita léria, mas há vinte anos que me comes as sopas, quando houve fome lá pelos palácios, foi aqui que a vieste matar, com a família atrás. E vinham todos mais humildes, vinharn quase de rastos» (p. 75).

Aliás, os momentos fugazes de abatimento em que se prostrava o marido de Berta, eram nele elementos mórbidos de uma psicose crónica. «Naqueles tempos difíceis, só Berta se atirara de frente, contra a fortuna. Carlos, amedrontado, arrastava-se pelos cantos da sua cobardia; .. – Tens de cortar nas despesas», dizia-lhe ela; e, depois de a ver «discutindo asperamente, num talho, o preço da carne... sofria por ver-se mais uma vez derrubado da largueza de senhor, para a discussão rasteira de preços de carne» (pp. 56-57). Estes elementos são transferidos, através do monólogo interior da fidalga, para o retrato psicológico de Álvaro Silvestre, «homem mole e silencioso» (p. 17), «o gebo que ali ia abatido no banco da charrete» (p. 23), «Meu Deus, este homem viscoso agarrado à saias. Até quando? A lapa no rochedo, a lapa dúbia, o homem cobarde, que nem coragem tem de ser ganancioso (p. 25). «Derreado» pelo «vexame a que a mulher o obriga no escritório do Medeiros» (p. 33), experimenta estados oníricos sob o acesso do álcool, como Carlos Bruno sob o acesso da febre. Daí a deformação de uma realidade animada de fantasmagorias:

cerrou as pálpebras, apertou-as brutalmente; formas convulsas começaram a crescer do mundo turvo que se abrira nele às palavras do médico, com a ajuda do brandy, estranhas metamorfoses, cavalos de crinas ardentes desgrenhados, e lá vinha a mulher sobre o xairel e a sela das visões, trazia reflexos de fogo nos cabelos, era uma amazona galopando através das labaredas. (pp. 59-60; subl. nosso)

Também Carlos, após a visita do médico e a saída de Berta, experimenta visões estranhas que lhe deformam os objectos:

A pontada desvanecera-se, mas uma zoada de febre incha ainda nos ouvidos de Carlos. Pouco a pouco, o guarda-fatos, o penteador, as cadeiras, recortam-se, hirtos, na fixidez do silêncio, levantam-se, reais, numa tensão de vida própria, sobre a presença aniquilada de Bruno. Se Carlos falasse, afugentaria todos aqueles bichos saídos da toca, e as parede. os móveis, a claridade sorrateira do sol enrolar-se-iam si, medrosos e anónimos. [...]. Velhos fantasmas abrem carantonhas de aflição, de idiotice, de ódio. (pp. 121-122; subl. nosso)

Outro aspecto que em muito aproxima Álvaro Silvestre de Carlos Bruno – como, aliás, as respectivas esposas –, é a função da memória, cujo poder evocativo e analéptico permite, para além da mise en abime, justapor o passado ao presente, confrontá-los, para recusar o primeiro e desejar o segundo. Quanto a Carlos, «De perdidas memórias, vinha-lhe o eco inútil das botas ferradas do pai batendo o corredor em frias madrugadas... a arrogância falida de berros ribombados, com ordens para a casa toda, para o mundo todo. Para ali estava agora arrombado, enrolado na sua impotência» (p. 37); «Do corredor, o relógio de pé encheu a casa de horas antigas. Vinham no seu rolar, lembranças de passados serões, com velhas damas de saias folhadas até ao chão, coisas mortas com um rasto de história triste e saborosa» (p. 37); «Olhava as casas do vale, fumando largas chaminés, enchendo os ares de um recolhimento de lareira. Olhava, pelo chão, as folhas húmidas dos castanheiros. [...]. Então um eco de infância acenou-lhe outra vez de longe. Um desejo de alegria irresponsável e natural. O prazer absoluto de uma quimera. O acordo com tudo. Vinham-lhe, no aceno, ternas lembranças de cadernos e livros numa saca de flores escarlates estampadas, um mapa amarelo com veios de rios e caminhos de ferro, o ferreiro, ao lado da escola, cantando, na bigorna, a serenidade das manhãs. Gloriosos, galos erguiam-se na paz erma. Pelas margens da ribeira, prados tristes de chocalhos» (pp. 6g-69); tendo margens da ribeira, prados tristes de chocalhos» (pp. 68-69); tendo regressado à aldeia natal, «pasmou, diante de si como diante de uma recordação esquecida. [...], sentia-se como quando, em criança, a sua vida era só o que havia a um metro à sua volta» (pp. 83-84); e, quando mais tarde, regressa à deserta casa paterna, «O vento largo e calmo, o gorgolar da ribeira traziam a Bruno, agora de novo no casarão de Vilarim, um longo cismar de todos os invernos de criança. [...] sentia em tudo a presença imóvel dos tempos de infância, como se ali nada tivesse crescido até ser homem. Assombrava-o que a cozinha não fosse maior, que as portas, os quartos se não tivessem dilatado à grandeza da sua memória [...]. Doía-lhe esse desencontro entre a real imobilidade de tudo e a lembrança que de tudo nele crescera consigo. [...]. Já nas vindas de Coimbra notara essa desarticulação entre as coisas reais e a saudade. [...]. Mas era sobretudo no silêncio da noite, com os vagos rumores no casarão que ele descobria essa estabilidade sem tempo e tão vã, na sua lembrança adormecida, na pura memória que não lembra e apenas sente» (pp. 213-214; subl. nosso).

Esta presença da memória afectiva aparece com não menor relevo em Álvaro Silvestre, sobretudo nos momentos mais ácidos de trevas, silêncio e solidão, em que a atormentada personagem exprime, em monólogo interior, o obsessivo desejo de um nostos, de um impossível regresso a uma irrecuperável infância, ao mundo intra-uterino. Este «complexo do seio materno», como diria Freud, está documentado em inúmeros passos, onde, exactamente como em Mudança, o contraste entre o passado e o presente é eficazmente marcado pelo deíctico «agora» (hac hora versus illa hora): enquanto sorvia a «humidade vagarosamente», qualquer lembrança remota parecida com aquilo... o seu próprio perfil de criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e por estrelas; o coração talhado numa grandeza já perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara ainda o medo à morte.... Agora não» (p. 68); mais adiante, sentado num marco de pedra, agasalhou-se na memória das manhãs infantis, numa evocação poética do mundo rural da sua Gândara de criança, da «fonte», da «Maria Leandra», da «água múrmura» que «escorria da bica»; e, com o ar transfigurado das manhãs infantis, «Tudo lhe pareceu cândido e simples como outrora, quando na concha do céu a claridade nascia com a sua brancura de espuma. E pôs-se a imaginar nas ramadas das árvores o despertar das asas: na ausência humana o canto das últimas vindimadeiras; a paciência corpulenta dos bois nos chãos lavrados; na sua própria boca azedada de brandy a frialdade pura da água» (cap. XVII, pp. 97-99). Enfim, em associação com o tempo, a água e a memória – e a água da memória – revela-se em ambos, ainda com mais força, uma outra presença: a presença da morte.

Longo vai já o inventário dos ecos intertextuais que interligam os dois romances. E, todavia, outros se poderiam acrescentar, como os que se referem, respectivamente, ao anonimato de Álvaro Silvestre e ao de Pedro, no início do Cap. I de Uma Abelha na Chuva e do Cap. 20 de Mudança (pp. 143 sqq.); às motivações – contrastantes com a atitude desculpabitizadora do director do jornal –, que levam o comerciante da Gândara à tentativa de confissão pública auto e heterodifamatória na Comarca da Corgos (cap. II, pp. 5-11) e à «consciência moral» que leva Carlos Bruno a reagir, perante a indiferença do juiz, contra a ideia de erigir um monumento à pintora Eugénia, lançada no jornal Hermínios pelo Santos, velho amante da artista, «que não amou só em tela» e a quem «por fim, servia qualquer carroceiro» (cap. 15, p. 109); e ainda a certos pormenores da escrita, como a repetição: «– Ver o quê? Ouve bem e de uma vez: estou-me nas tintas para os teares e para o teu pai. Marimbando-me. Que compre teares, que compre o raio. Nada tenho com isso. Nas tintas, amiga» (Mudança, p. 147; subl. nosso); «Rodou sobre si mesmo, deu passos desastrados, e afandou-se de cabeça no meiple.

De cabeça. D. Maria dos Prazeres. Que lhe dizia eu?» (Uma Abelha na Chuva, p. 77; subl. nosso).

Mas a qualidade-mestra que une as duas obras é o elevado nível poético nelas atingido. O romance português encontrou finalmente a sua vocação, a vocação congénita ao povo luso: emancipou-se dos grandes paradigmas diegéticos do romance anglossaxónico, brasileiro e russo, para seguir as veredas da poesia e da reeinvenção da escrita. A realidade já não é imposta do exterior, mas dimana da subjectividade das personagens e de uma linguagem criativa simbólica, mais transfiguradora do que mimética: o discurso passa a ter ascendente sobre a história, e a literatura nacional, seguindo vias originais, trilhando o caminho que era o seu, acabaria por se impor à Europa como um grande e inédito «livro do desassossego». E assim se pôs termo (por quanto tempo?) à menoridade estética do romance português, tantas vezes referida na obra crítica de Gaspar Simões. Ora esta revolução é efectuada por Vergílio Ferreira a partir de Mudança, e a sua experiência estética reflectiu-se profundamente, como acabamos de ver, na obra-prima de Carlos de Oliveira, que também foi um excelente poeta em verso. As sucessivas revisões a que submeteu a sua obra romanesca e o seu Trabalho Poético, revelam, para além de uma aguda consciência artística, um dignificante espírito da abertura a mensagens estéticas alheias.

Deste modo, pretendemos sublinhar que a nossa análise das relações intertextuais dos dois romances em questão, não visam atingir em nada nem a originalidade, nem o valor artístico de Uma Abelha na Chuva. Desta narrativa, muitas e interessantes leituras foram já feitas, mas todas numa perspectiva sintagmática a que não tem sido alheia a hermenêutica estruturalista. A nossa não pretende substituir-se a nenhuma delas, mas apenas ocupar um lugar vazio que ainda resta e, associada a todas as outras, prestar um modesto contributo à compreensão global da narrativa. Com efeito, só numa perspectiva paradigmática, poderemos ter acesso à transcendência textual com que se prende a génese da obra, pois esta, como disse Gérard Genette, «en transforme ou en imite (ce qui est une autre forme de transformer) une ou plusieurs autres: des pans entiers de la littérature universelle, de l'Odyssée (au moins) à nos jours, se sont édifiés de la sorte, et je ne vois guère de raison que cela cesse: «bricolages des formes et recyclage des sens (ou l'enverse) sont les deux mamelles de toute tradition» (1983: 40; cf. etiam 1982). É, de facto, por tais processos de transformação que passa aquilo a que Claude Abastado (1979) chamou «le rituel de l'écriture». Ora, é a nosso ver neste ponto que se devem dar as mãos, em estreita colaboração, os teorizadores da intertextualidade e os comparatistas. Têm alguns dos primeiros desdenhado dos segundos, chegando mesmo a atribuir conotação pejorativa a metáforas hídricas, como «fontes» e «influências». Ora, se o seu objectivo é estudar os processos de transformação, têm de encontrar, antes de mais, resposta para esta pergunta: transformação de quê? E, para a conseguirem, de duas uma: ou se servem dos factos (textos) descobertos pelos comparatistas aplicando-lhes embora um novo ângulo de visão – ou têm eles mesmos de os procurar, o que implica a prática do comparatismo. Talvez seja por estas dificuldades que há um excesso de teorização intertextual, bem contrastante com a pobreza de exemplos ou aplicações práticas. O notável trabalho de Geneviève Idt (1984: 5-20) constitui uma boa resposta aos depreciadores da Quellenforschung, esquecidos da complementaridade das duas tarefas heurísticas: a do hipotexto e a da suas relações dialógicas com o hipertexto, baseadas no que os aproxima e no que os separa.

Dentro destes objectivos, não se trata, pois, de diminuir o valor de uma obra, mas antes de apreender os processos de transformação intertextual, pois, na estética da produção, não há creatio ex nihilo. Longe de lhe coarctarem a liberdade artística, os elementos pré-textuais reforçam-na, actuando como estímulos ou agentes catalizadores da criatividade. E, se há valor artístico, a obra resiste sempre, na sua originalidade, por maiores ou mais extensos que sejam os elementos exógenos nela incorporados. É por isso que a Eneida, encarada numa perspectiva holística e não apenas de pormenor, não deixa de ser obra profundamente original, apesar de integrar inúmeros versos de Homero; como Les Aventures de Télémaque de Fénelon, apesar dos nexos intertextuais que o ligam aos poemas de Homero e de Virgílio; como o conto «A Perfeição» de Eça de Queirós, apesar de incorporar elementos do Canto V da Odisseia. É o caso de Uma Abelha na Chuva que permanecerá como obra original, inconfundível com o romance esteticamente revolucionário de Vergílio Ferreira, apesar do estreito dialogismo intertextual que os interliga.

As diferenças que separam uma obra da outra, podem avaliar-se pelo tratamento dado a dois personagens-chave: Álvaro Silvestre e Carlos Bruno. Ruína mórbida o primeiro, coerência lúcida o segundo, há entre eles a distância que vai de um comerciante da Gândara a um intelectual de Vilarim, formado pela Universidade de Coimbra. Há sobretudo a distância imposta pelos dois universos ficcionais a que pertence um e outro. O estado psíquico do primeiro é mórbido e faz dele uma personagem freudiana, como já acentuou Liberto Cruz (1974: 21-22). Destroçado por dentro, só por dopagem etílica consegue a força necessária para «arrombar o quarto sufocante em que jazia» (p. 108). Primeiro, tentou difamar-se a si e à mulher, por escrito no jornal. Depois, conseguiu insultá-la com eficácia. Por fim, denuncia o Ruivo ao oleiro e provoca-lhe indirectamente a morte. Neste aspecto, o seu conflito é transitivo: sai dele e repercute-se no(s) outro(s). Com Carlos Bruno, é diferente: o conflito é intransitivo; as diatribes com Berta, o duelo com Raul, a incompatibilidade com o meio, são apenas emergências do icebergue que lhe flutua no mar tempestuoso da consciência. Espírito lúcido, fora do vulgar, é do excesso dessa lucidez e da coerência com ela, que lhe brota a tragédia. Para ele a morte é um problema; para a consciência torturada de Álvaro Silvestre, uma obsessão – obsessão com que começa e acaba no romance, uma situação de impasse a que se assiste do princípio fim, como no eterno presente de um labirinto sem saída possível. Em Carlos Bruno, pelo contrário, há um fluir, uma duração, um devir: há a mudança e a continuidade dela, na busca de um absoluto que dê à vida sentido e coerência:

Mais fundo que depois da crise, Carlos descobria-se agora entre as formas do desamparo e da ruína, Outrora, uma harmonia de certezas impensadas punha no seu lugar cada peça da vida. O seu amor. o seu ódio, tudo o que era de vir à rua afirmar um destino, tinha o seu rumo traçado. Mas agora, o ódio, o amor, o sonho andam-lhe dentro perdidos, sentam-se-lhe no coração, de braços cruzados, ou irrompem bruscamente não movimentados por uma razão mas à procura dela. (p. 156)

Neste aspecto, a personagem desvela-se como uma projecção autobiográfica do próprio romancista, o que não acontece na narrativa de Carlos de Oliveira, onde só o Dr. Neto parece reflectir algo da personalidade do autor.

Enfim – digamo-lo a título recapitulativo – a experiência estética revelada em Mudança de Vergílio Ferreira, reveste-se de um duplo motivo de interesse: a sua actualidade e o seu carácter inovador, Quanto a este segundo aspecto, são inegáveis as marcas que imprimiu no Carlos de Oliveira de Uma Abelha na Chuva. Esta obra-prima aparece ligada à anterior por nexos dialógico-intertextuais, que dificilmente poderiam negar-se. Referimo-nos em concreto, à carga simbólica da água, à recuperação da subjectividade, e à caracterização das personagens, aspectos não inventados por uma leitura especulativa, mas comprovados por emergências fenotextuais suficientemente manifestas.

Sem retirar um átomo sequer ao valor da obra-prima do romancista da Gândara, julgamos desta maneira prestar ao autor da Mudança, a justiça que lhe é devida e nem sempre lhe foi prestada no devido tempo. Uma questão de ética? Sem dúvida. Bem falta está ela a fazer à crítica literária, quer entre nós, quer no estrangeiro, e um crítico da estatura de Wayne C. Booth chamou recentemente atenção para isso (1988).

Nem será sequer descabido o estudo de um tal romancista, nesta recolha de trabalhos em homenagem à memória de um brilhante professor universitário como o Prof. Costa Pimpão, Director da mesma Faculdade da Universidade de Coimbra em que se licenciaram os dois escritores. Em relação a Vergílio Ferreira, que, num trabalho publicado na Biblos em 1942, havia contestado a influência de Platão em Camões, reconhece-lhe suficiente valor, para mostrar, aliás em termos muito corteses, a sua discordância (1972: 111-120). Queremos, com esta anódina coincidência, dizer que as dicotomias são geralmente abstracções artificiais, com Que se pretende exaltar um pólo em desfavor do outro, como se o homo aestheticus e o homo academicus estivessem separados por compartimentos estanques. Ora, diz-nos a prática que um e outro são indispensáveis à vida da polis, há intercomunicação intersistémica entre os dois mundos. E há mesmo gigantes, mais verosímeis que o Micrómegas de Voltaire, que juntam, na distância dos dois pés, as margens que os separam: por exemplo, um Vitorino Nemésio e um David Mourão-Ferreira entre nós, um Manuel Bandeira e uma Cecília Meireles entre os brasileiros, um Dâmaso Alonso e um Pedro Salinas entre os espanhóis, um Auden e um Duncan entre os Ingleses. Enfim, é sob o signo da abertura, que se opera a interdiscursividade, a comunicação intersistémica, a circularidade cultural e o dialogismo intertextual. Tal como a intersecção dos paradigmas que vincula Uma Abelha na Chuva de Carlos de Oliveira a Mudança de Vergílio Ferreira.

NOTAS

(1) Concluído em 9/4/1989, este trabalho é indissociável desse referente cronológico, afora um ou outro elemento bibliográfico posterior a esta nota que incluímos com a devida vénia e por tal nos parecer imprescindível. Embora não sintamos razões válidas para o reescrever, podemos, contudo, asseverar que de modo nenhum seria redigido com o mesmo estado de espírito, agora em que estão a ser revistas as provas tipográficas (24/12/1990). Tão extensas, tão profundas e tão céleres – embora não imprevisíveis –, têm sido as mutações registadas neste breve lapso de tempo. Tal chega a ser também a constrição dos nexos que vinculam o texto ao seu contexto.

(2) Embora complexos, «moderno» e «pós-moderno» são dois conceitos com que temos de nos habituar a conviver. Dissecá-los aqui, seria, para além de descabido, uma fuga aos objectivos deste trabalho. Partimos, pois, do princípio de que o Leitor conhece as marcas dominantes ou mais pacificamente aceites, de um e de outro. Aliás, e como sequência do impasse estruturalista (Foucault, L. Strauss), tem surgido na presente década e a um ritmo acelerado uma bibliografia abundante. não muito fácil de controlar. Entre outras referências, mencionemos as seguintes, que nos foi possível compulsar: AA. VV. [987 (ter), 1988 (bis) e 1989], ], Ballesteros (1989), Baudouin (1946), Carrilho (1989), Drummond (1988), Finkielkraut (1988). Fernandes (1987), Ingram (1988), Lipovetsky (1987), Lyotard (1979), Renaud (1989). Rockmore (1989), Rossi (1986), Vattimo (1980, 1985 e 1986), Viano (1985).

(3) Do ponto de vista mais estritamente estético, consideramos como fundamentais: Jauss (1978: 158-209), Fokkema (1983), Habermas (1988), Lipovetsky (1988) 75-125), Meschonic (1988) e Mongin (1987: 60-74).

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Texto publicado na revista Biblos, vol. LXIV, 1988.

Manuel dos Santos Alves é professor associado da Universidade do Minho, onde lecciona as disciplinas de Literatura Comparada e Estudos Camonianos / Estudos Pessoanos. É Licenciado em Filologia Clássica pela Universidade de Coimbra, com a tese As Fenícias de Eurípides: Introdução, Tradução e Notas, publicada pelo Instituto de Alta Cultura e pelo Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos em 1975. É doutorado em Literatura Portuguesa com a tese Eça de Queirós sob o Signo de Mnemósine: Intertexto, Interdiscurso, Dialogismo (De Tróia ao Lácio), apresentada à Universidade do Minho em 1992. O seu trabalho de investigação tem incidido sobre a tragédia grega, a obra de Eça de Queirós, o intertexto clássico na literatura portuguesa, a recepção de Leconte de Lisle em Portugal, Teixeira de Pascoaes, Neo-realismo, Carlos de Oliveira, Vergílio Ferreira, etc. Colaborou no Dicionário de Eça de Queirós e tem trabalhos publicados sobre os vários temas acima enunciados.

In: Projecto Vercial, em linha em:
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/salves.htm