LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO TERCEIRO
 
44
«Cinco Reis Mouros são os inimigos,
Dos quais o principal Ismar se chama;
Todos exprimentados nos perigos
Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.
Seguem guerreiras damas seus amigos,
Imitando a fermosa e forte Dama
De quem tanto os Troianos se ajudaram,
E as que o Termodonte já gostaram.

45
«A matutina luz, serena e fria,
As Estrelas do Pólo já apartava,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se a Afonso, o animava.
Ele, adorando Quem lhe aparecia,
Na Fé todo inflamado assi gritava:
– «Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis,
E não a mi, que creio o que podeis!»

46
«Com tal milagre os ânimos da gente
Portuguesa inflamados, levantavam
Por seu Rei natural este excelente
Príncipe, que do peito tanto amavam;
E diante do exército potente
Dos imigos, gritando, o céu tocavam,
Dizendo em alta voz: – «Real, real,
Por Afonso, alto Rei de Portugal!»

47
«Qual cos gritos e vozes incitado,
Pela montanha, o rábido moloso
Contra o touro remete, que fiado
Na força está do corno temeroso;
Ora pega na orelha, ora no lado,
Latindo mais ligeiro que forçoso,
Até que enfim, rompendo-lhe a garganta,
Do bravo a força horrenda se quebranta:

48
«Tal do Rei novo o estâmago acendido
Por Deus e polo povo juntamente,
O Bárbaro comete, apercebido
Co animoso exército rompente.
Levantam nisto os Perros o alarido
Dos gritos; tocam a arma, ferve a gente,
As lanças e arcos tomam, tubas soam,
Instrumentos de guerra tudo atroam!

49
«Bem como quando a flama, que ateada
Foi nos áridos campos (assoprando
O sibilante Bóreas), animada
Co vento, o seco mato vai queimando;
A pastoral companha, que deitada
Co doce sono estava, despertando
Ao estridor do fogo que se ateia,
Recolhe o fato e foge pera a aldeia:

50
«Destarte o Mouro, atónito e torvado,
Toma sem tento as armas mui depressa;
Não foge, mas espera confiado,
E o ginete belígero arremessa.
O Português o encontra denodado,
Pelos peitos as lanças lhe atravessa;
Uns caem meios mortos e outros vão
A ajuda convocando do Alcorão.

51
«Ali se vêm encontros temerosos,
Pera se desfazer ũa alta serra,
E os animais correndo furiosos
Que Neptuno amostrou, ferindo a terra;
Golpes se dão medonhos e forçosos;
Por toda a parte andava acesa a guerra;
Mas o de Luso arnês, couraça e malha,
Rompe, corta, desfaz, abola e talha.

52
«Cabeças pelo campo vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido,
E doutros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o cesto amortecido.
Já perde o campo o exército nefando;
Correm rios do sangue desparzido,
Com que também do campo a cor se perde,
Tornado carmesi, de branco e verde.