LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO SEGUNDO
 

11
Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha, debuxada
Sobre a única Fénix, virgem pura;
A companhia santa está pintada,
Dos doze, tão torvados na figura
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.
12
Aqui os dous companheiros, conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o Mundo governava.
Os cheiros excelentes, produzidos
Na Pancaia odorífera, queimava
O Tioneu, e assi por derradeiro
O falso Deus adora o verdadeiro.

13
Aqui foram de noite agasalhados,
Com todo o bom e honesto tratamento
Os dous Cristãos, não vendo que enganados
Os tinha o falso e santo fingimento.
Mas, assi como os raios espalhados
Do Sol foram no mundo, e num momento
Apareceu no rúbido Horizonte
Na moça de Titão a roxa fronte,
14
Tornam da terra os Mouros co recado
Do Rei pera que entrassem, e consigo
Os dous que o Capitão tinha mandado,
A quem se o Rei mostrou sincero amigo;
E sendo o Português certificado
De não haver receio de perigo
E que gente de Cristo em terra havia,
Dentro no salso rio entrar queria.

15
Dizem-lhe os que mandou que em terra viram
Sacras aras e sacerdote santo;
Que ali se agasalharam e dormiram
Enquanto a luz cobriu o escuro manto;
E que no Rei e gentes não sentiram
Senão contentamento e gosto tanto
Que não podia certo haver suspeita
Nũa mostra tão clara e tão perfeita.
16
Co isto o nobre Gama recebia
Alegremente os Mouros que subiam,
Que levemente um ânimo se fia
De mostras que tão certas pareciam.
A nau da gente pérfida se enchia,
Deixando a bordo os barcos que traziam.
Alegres vinham todos porque crêm
Que a presa desejada certa têm.

17
Na terra cautamente aparelhavam
Armas e munições, que, como vissem
Que no rio os navios ancoravam,
Neles ousadamente se subissem;
E nesta treïção determinavam
Que os de Luso de todo destruíssem,
E que, incautos, pagassem deste jeito
O mal que em Moçambique tinham feito.
18
As âncoras tenaces vão levando,
Com a náutica grita costumada;
Da proa as velas sós ao vento dando,
Inclinam pera a barra abalizada.
Mas a linda Ericina, que guardando
Andava sempre a gente assinalada,
Vendo a cilada grande e tão secreta,
Voa do Céu ao mar como ũa seta.

19
Convoca as alvas filhas de Nereu,
Com toda a mais cerúlea companhia,
Que, porque no salgado mar nasceu,
Das águas o poder lhe obedecia;
E, propondo-lhe a causa a que deceu,
Com todos juntamente se partia
Pera estorvar que a armada não chegasse
Aonde pera sempre se acabasse.
20
Já na água erguendo vão, com grande pressa,
Com as argênteas caudas branca escuma;
Cloto co peito corta e atravessa
Com mais furor o mar do que costuma;
Salta Nise, Nerine se arremessa
Por cima da água crespa em força suma;
Abrem caminho as ondas encurvadas,
De temor das Nereidas apressadas.

21
Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,
Vai a linda Dione furiosa;
Não sente quem a leva o doce peso,
De soberbo com carga tão fermosa.
Já chegam perto donde o vento teso
Enche as velas da frota belicosa;
Repartem-se e rodeiam nesse instante
As naus ligeiras, que iam por diante.

 
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>estrofes 22-32