LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO NONO
 

45
Vão-a buscar e mandam-a diante,
Que celebrando vá com tuba clara
Os louvores da gente navegante,
Mais do que nunca os d' outrem celebrara.
Já, murmurando, a Fama penetrante
Pelas fundas cavernas se espalhara;
Fala verdade, havida por verdade,
Que junto a Deusa traz Credulidade.

46
O louvor grande, o rumor excelente,
No coração dos Deuses que indinados
Foram por Baco contra a ilustre gente,
Mudando, os fez um pouco afeiçoados.
O peito feminil, que levemente
Muda quaisquer propósitos tomados,
Já julga por mau zelo e por crueza
Desejar mal a tanta fortaleza.

47
Despede nisto o fero moço as setas,
Ũa após outra: geme o mar cos tiros;
Direitas pelas ondas inquietas
Alguas vão, e algũas fazem giros;
Caem as Ninfas, lançam das secretas
Entranhas ardentíssimos suspiros;
Cai qualquer, sem ver o vulto que ama,
Que tanto como a vista pode a fama.

48
Os cornos ajuntou da ebúrnea Lũa,
Com força, o moço indómito, excessiva,
Que Tétis quer ferir mais que nenhũa,
Porque mais que nenhũa lhe era esquiva.
Já não fica na aljava seta algũa,
Nem nos equóreos campos Ninfa viva;
E se, feridas, inda estão vivendo,
Será pera sentir que vão morrendo.

49
Dai lugar, altas e cerúleas ondas,
Que, vedes, Vénus traz a medicina,
Mostrando as brancas velas e redondas,
Que vêm por cima da água Neptunina.
Pera que tu recíproco respondas,
Ardente Amor, à flama feminina,
É forçado que a pudicícia honesta
Faça quanto lhe Vénus amoesta.

50
Já todo o belo coro se aparelha
Das Nereidas, e junto caminhava
Em coreias gentis, usança velha,
Pera a ilha a que Vénus as guiava.
Ali a fermosa Deusa lhe aconselha
O que ela fez mil vezes, quando amava;
Elas, que vão do doce amor vencidas,
Estão a seu conselho oferecidas.

51
Cortando vão as naus a larga via
Do mar ingente pera a pátria amada,
Desejando prover-se de água fria
Pera a grande viagem prolongada,
Quando, juntas, com súbita alegria,
Houveram vista da Ilha namorada,
Rompendo pelo céu a mãe fermosa
De Menónio, suave e deleitosa.

52
De longe a Ilha viram, fresca e bela,
Que Vénus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Pera onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Pera onde as naus navegam a movia
A Acidália, que tudo, enfim, podia.

53
Mas firme a fez e imóbil, como viu
Que era dos Nautas vista e demandada,
Qual ficou Delos, tanto que pariu
Latona Febo e a Deusa à caça usada.
Pera lá logo a proa o mar abriu,
Onde a costa fazia ũa enseada
Curva e quieta, cuja branca areia
Pintou de ruivas conchas Citereia.

54
Três fermosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.

55
Num vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde ũa mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está pera afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente.