CIRCO DO NADA CEGO
de Fernando Botto Semedo, 1998
PAULO BRITO E ABREU

Ao encetarmos, agora, mais uma viagem de crítica literária, cogitamos, deveras: é urgente, nas Almas, uma hermenêutica, recta e correcta, do orbe e da Obra de Fernando Botto Semedo. Cremos, na verve, que este Poeta escreve acicatado e estimulado por Dor que o dilacera: trata-se, aqui, do poema como um surto e uma sorte de moral desinfecção...

Dilucidando, destarte, o seu leitor, o informa Botto Semedo que «As lágrimas do vazio de deus / Tingem-se de fotografias do nada», que «A minha alma é um circo do nada cego / Que baila no orvalho de sangue / De um rosto desconhecido e destruído», que na sua alma, alfim, «amortalhada / Em cartão de amor» (…) «Passam cadáveres com serpentinas infinitas de dor».

Outrora e agora, muito bem. O curso, e o discurso, faz considerar. Em acurada, ou apurada Psicologia, o paciente sofre uma ferida narcísica quando a punção, ou pungimento, foi dirigido, ou infligido, ao seu amor-próprio. Isto mesmo nos revela, sem medo, o Autor. Em psicografia de «carnaval com máscaras de lata», a sua alma «são lágrimas infinitas / De saudade por todas as infâncias destruídas». Se o amador se transforma, viridente, em causa ou cousa amada, também nós diríamos, seguindo ou segundo Schopenhauer, que toda a paixão é compaixão: chorar a infância dos outros é planger, outrossim, pela perda ou a perca da nossa mesma infância.

Um aparte e um reparo, porém: nós não queremos, de forma nenhuma, psicanalisar ou psiquiatrizar Fernando Botto Semedo. Anelamos, isso sim, tomar o Poeta e o asceta na sua totalidade, ou melhor, na sua humanidade. E um dos aspectos, ou aspeitos, desse homem integral, desse homem coeso, irmano e total, será, como é óbvio, a Psicologia. Para Botto Semedo, efectivamente, imprimir, ou exprimir, a sua alma amortalhada, é espremer, com força ou infrene, o pus e o fel da ferida narcísica. Ora aqui eis, em metáfora, o Verbo íntimo, o imo, da sua Poesia. Pensar, para este Poeta, é aplicar, tão preste, o penso, na ferida ou na clivagem causada pelo mundo. Em corajosa didáctica, e rigorosa didascália: o mundo, para Fernando Botto Semedo, não é cidade e não é cosmos: é sim defeito ou imundícia, inominada dejecção. E, se anónimo é o circo que é anómalo, aquilo que não tem nome, o homem sente-o como Nada. Estamos, dessarte, no reino da amorfia, e entramos, então, no domínio da anarquia.

O Poeta continua, o Poeta reincide: «A minha alma alva é um ser fantoche / Das lágrimas do nada»; por vocações, ou vocábulos outros, a sua alma define-se como «um labirinto de bailarinos cegos / No interior de espelhos alucinados»; no dédalo, imenso, de fantoches e fantasmas, «a alma de jardins do nada é um incêndio / De chagas», ou melhor, nas «almas numeradas pelo nada», as «fotografias de todos os mortos / enfeitam», efectivamente, «a alma» danada ou «do nada». O clima, pois, aqui, é o de uma terra desértica, de uma vasta e informe terra de ninguém. Botto Semedo interroga, infausto, a Musa e a Esfinge. Mas como únicos companheiros de viagem se levantam e alçam, cada vez mais fatais, a Morte e a Morte, o sangue e o nada.

E eis agora, então, como um problema e dilema de crítica literária se avizinha, para o carme, de um dilema metafísico. À pergunta de Moisés sobre o nome e a natura da Voz, que lhe fala no Fogo e no fulgor, bem responde, rectamente, Jeová: «Eu sou Aquele que sou.» E ficou, durante séculos, tarefa da Ontologia, o estudo e o estado do Ser enquanto Ser. Isto, racionalmente, num mundo policiado, em que o homem, providente, se situava na «polis». A unicidade do Ser era facto incontestável, e corolário desse feito, ou desse efeito, era a unidade inviolável da pessoa humana. Porque indivíduo, etimologicamente, é uma figura e um «topos» que não se divide.

Mas nos ajudem os Numes: Fernando Botto Semedo é recipiendário, ou herdeiro, de uma ruptura e de um rasgão em que «o Eu é um Outro», o centro é disperso e se estilhaça, em pedaços, a pessoa metafísica. Este tipo de escrita apela, efectivamente, para a ciência ou a experiência de Rimbaud, de Mário de Sá-Carneiro, de Kierkegaard e, alfim, do fantasmático e ático Fernando Pessoa. Temos, então, que a misteriosa e saudosa pergunta de Heidegger ecoa, mais do que nunca, num Autor lusitano e rimbaldiano: «Porquê o Ser», com efeito, «porquê o Ser e não o Nada?» E eis como, em Nietzsche, Nerval e Botto Semedo, a morte de Deus dá origem, como vemos, ao homem radical, ao sujeito amortalhado. É que mesmo os anjos, nesta poética, se desvelam e revelam, não em Paracleto, mas sim no «silêncio da morte», numa «eternidade vazia», ou melhor, na «eternidade de bonecos de pano rasgado».

Nesta ferida ontológica e narcísica, nesta sutura, e nesta divisão, se inscreve, como é visto, a palma e a alma de Fernando Botto Semedo. Para o «Carnaval de Espelhos» e feira de vaidades que é o mundo literário, digamos, sem jaça, com Jacques Rigaud: vós, Poetas e amigos, sois Poetas e «personas», sois pessoas importantes: Botto Semedo está, apenas, do lado da Morte.