Ele
sempre carregava. Fosse o que fosse. Estava sempre pronto
para carregar. Havia uma disponibilidade extrema em seu rosto. Seu
rosto era um reflexo de sua alma. Alma de carregador. Uma alma sempre
disposta a carregar. Ajudar de graça, ser solícito. Ajudar-se. Óbvio. Quem
tanto ajuda, espera se ajudar, mesmo que não declare isso no imposto da
vida. O egoísmo tem lá os seus méritos e a sua função. Autopreservação da
espécie. Mas deixemos de lado os egoístas. O carregador pede continuação.
Ele era prestativo como
ninguém. Inclusive, se ninguém estivesse precisando de ajuda, ele , assim
mesmo, daria uma forcinha e punha-se a carregar o vazio da vida ... que
tanto pesa. Sua alma já nascera assim. Julgava que carregar era o melhor
da vida. Na verdade, ele não carregava nada. Ou melhor, carregava o nada e
o peso milenar do niilismo. O carregador fraco, ao carregar sua mercadoria
podre, empobrecia a todos que ajudava. A vida tornava-se insuportável e o
carregador justificava-se nessa repudiante missão. Os homens tornando-se
cúmplices. Uns dos outros. A fraqueza disseminando-se como recompensa da
bondade... E uma grande expiação coletiva em forma de cultura, sociedade e
até de história. Judaico-cristã. Ajudai-vos uns aos outros ficava
estampado em seu rosto quando se oferecia para carregar algo. E quando não
havia algo para carregar , ele punha-se a carregar nossas vidas. É claro
que, com isso, nos tornávamos seres culposos, carregadores também. E assim
a Grécia desabou. E assim Roma sucumbiu ao peso de suas piores catacumbas
e seus carregadores da nova palavra. Estes agora, no lugar dos
gladiadores. A escravatura mais atroz , a maior vileza, o ato mais
profano. Ajudai-vos uns aos outros. O carregador está sempre alerta,
sempre pronto a nos ajudar. O reativo em seu esplendor. E ele domina por
inteiro o cenário. Ele se arrebenta de tanto carregar. O fraco enfraquece
o forte. Todo o cansaço do carregador, todo o sofrimento em seu rosto, em
seus gestos marcados, tornando-se nossa herança e nos fazendo , também,
novos carregadores. Nossa fraqueza, eis
a força reativa que ele demonstra nessa instantaneidade
do préstimo. Degeneramo-nos num piscar de olhos. Os escravos e seus
carregamentos dominando todos os confins do globo terrestre. Três vivas
à democracia, gritam todos. As massas empanturrando-se com os
biscoitinhos finos da marca Oswaldiana.
Certa vez
o carregador viu-se num circo,
transportando objetos pesados de um lado para outro. Era dia de ensaio
geral. Quando deu por si estava olhando o picadeiro
e percebeu , num silêncio esplendoroso, um grupo de dançarinos
acrobatas fazendo números realmente surpreendentes. Nada falavam.
Movimento puro. O carregador conhecia muitos lugares no mundo, já visitara
os lugares mais estranhos possíveis, porém
ali havia algo inusitado. Olhou para a carga e deitou-a, com o
cuidado de um carregador experiente, ao pé de si. Esses dançarinos não
carregavam nada. Saltavam e pulavam e sentiam e voavam de trapézio para
trapézio. Estavam felizes, leves, harmoniosos, sem culpa alguma. O
carregador achou aquilo estranho, pois ele sempre via culpa no rosto de
quem ajudava. O mundo era o peso, o fardo. A culpa. E a remissão no ato de
ajudar. De carregar. O
carregador percebeu que a sincronia de tudo aquilo não necessitava de
ajuda alguma. Eles se completavam. E sem carregamento algum.
Pura dádiva, doavam-se ao instante seguinte sem o menor receio, sem
expectativa alguma. Enfim, amavam a vida livremente. E não esperavam por
ninguém. Jogavam-se ao espaço e os corpos cintilavam um estranho brilho
com a cor da verdade. Todos
aqueles movimentos , saltos, aquela alegria por nada, deixou o carregador
incomodado. Afinal de contas, aqueles dançarinos não ajudavam
ninguém. Simplesmente dançavam. Aquela nobreza ativa fez-lhe tremer todo
por dentro. Sua alma ia sufocando. Ao fundo uma leve música tocada de
mistério preenchia o circo. Ele não conseguia atinar com tudo aquilo.
Gratuito. Mas a situação piorou
quando ele percebeu que eles ensaiavam sem rede alguma, sem
proteção nenhuma. Sem rede, sem corda. Puro acontecer. Criavam-se ali,
livres, sem obstáculo . Subitamente ele se sentiu mal e uma espécie de
náusea que nunca experimentara tomou-o por inteiro. Movimentou-se rápido e
tão desastradamente que até esqueceu a culpa, vale dizer, o carregamento.
Quem o visse teria visto um doido correr. Quando olhou em volta, já estava
fora da lona, em pleno céu azul, e o calor a bater-lhe na cara. Esfregou a
pele do rosto como se quisesse perceber algo por debaixo. Enfiou as unhas
com alguma vontade e nem sangue saiu. Sua suspeita confirmava-se. Por
baixo daquilo tudo não havia nada. Lembrou-se da dançarina de colete azul
e seus saltos gratuitos. O carregador
pertencia a este mundo. Para sempre. Também era do últimos homens .
Um simulacro.
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