:::::::::::::::::::::LUÍS COSTA::::::::::::
DOIS POEMAS PARA O GATO BENITO

TRANSPARÊNCIA DOMINICAL

O meu gato Benito, como um rei, estendido sobre as costas do
cadeirão. A janela sobre a rua das traseiras, aberta.
Gritos de crianças - ainda tão livres ! - sobem até nós, lembram-
- nos uma passagem do Novo Testamento:

- Jesus, porém, disse: deixai os meninos, e não os estorveis de
vir a mim; porque dos tais é o reino dos céus. *

Ah! e o riso do sol das três! O céu tão azul ! E o mar...
Conversas de domingo pinceladas a amendoim e a cerveja:
a Pintura, o Cinema, a Literatura, alguma Teologia bem como a
Filosofia, e a fotografia de Chirico que tanto nos faz sonhar com
a máquina a vapor de Hieronymus Bosch.
De todas as vezes que o silêncio irrompe, a voz da minha vizinha,
melancólica, mas grosseira como um garanhão...
De novo, o meu gato Benito, que agora nos observa, curioso, por
entre um nevoeiro de preguiça, como que dizendo:
- Pobres homens! Pobres homens ! -
Ah! dias como estes... Dias de mãos sem anéis. Dias em que todas
as coisas repousam sobre o vazio da sua própria presença.

* S. Mateus 14, 15

SESTA

Com a sombra do meu gato ao colo, sossego
Sobre o cadeirão do sol das catorze e um quarto.
Não tenho sede. Não tenho fome. Não tenho frio.
E o jogo dos espelhos rutilantes mostra-me a realidade
Desprovida de pampas e penachos.
E há alguém que passa, e há alguém que diz:
"boa-tarde".
E há alguém que me fala do barbeiro da minha
juventude. Coitado! Deus o tenha.
E é então que me apercebo da nudez das ruas brancas
das telas nuas, da possibilidade que dormita
ao canto de cada janela...
E é então que um sino ecoa para lá dos montes claros
E é então que o meu gato salta para o sofá
e desaparece
num vendaval de espanto.