LUÍS COSTA:::::::::::::

Vozes periféricas II

1 

Para André Breton

INSANGRAVAM luares nos bicos das aves.

as mulheres olhavam-nas. os rostos divididos.

como cavalos. os rostos divididos.

eram mulheres grandes.

traziam colares de sóis negros ao pescoço.

e sabiam falar pelos vasos comunicantes.

Breton! Breton!

gritavam os filhos nas varandas de estacas floridas.

Breton! Breton!

e o ouro luzia nos olhos dos animais selvagens.

luzia. o ouro.

a sua magia cantante!

e, de repente, os avós ocorriam.

ocorriam. vinham do fundo dos pântanos

onde moravam no sonho dos séculos.

ainda sujos de barro e lodo. vinham.

os animais deslumbrantes. atrás.

pasmados, os filhos olhavam-se no fundo

dos espelhos que os avós traziam ao peito.

olhavam-se.

eram espelhos negros, poderosos, fundos

muito produndos.

e as mulheres aproximavam-se dos homens

que agora saíam daqueles espelhos.

aproximavam-se daqueles homens

que agora saiam dos espelhos

ainda húmidos de húmus.

e davam-lhe a beber da sua jovem

menstruação. davam.

e era assim que um amor precioso nascia.

e à volta, agora, os filhos dançavam e cantavam

cortados pela luz, dançavam e cantavam:

Breton! Breton!

e os avós regressavam aos pântanos,

contentes, como  flores erectamente inclinadas.

 

2 

RODEADOS pela geometria da água avançam

procuram o meio - dia dos magníficos troféus sob os oásis embandeirados

quando os punhais relincham nos peitos dos avós

sabem , lá no fundo, que tudo não passa de um equívoco

um erro de luz, linguístico, talvez,

pois quem pode soletrar a essência das coisas sem as falsificar?

quem pode dizer o indizível?

soletrar o silêncio e impor-lhe a astúcia da boca humana

sem que antes se perca no labirinto das sombras

no ódio e no amor, nos excessos da luz, nas honras do crime

e sinta um álcool amarelo terrificar-lhe a garganta

duro e amarelo como um mel petrificado nas ânsias dos velhos?

nada pode ser dito sem o perigo da queda

sem o erro que habita os limiares e ilumina os salões

com uma fúria a que chamam o amor da verdade

nada pode ser dito sem o perigo da queda;

e assim avançam, avançam pela corda bamba,

exímios equilibristas

os queixos belos e altos, as coleiras brilhando ao pescoço

orgulhosos dignitários dos estandartes dos deuses,

senhores da esperança ...

ah.. ! mas tão perto da podridão que se ergue dos abismos,

dos perfumes nauseabundos que os habitam

com os seus pequenos animais roxos que espreitam através das

frinchas, no puro silêncio das fezes.

 

3 

Ao meu tio José e ao Leopoldo  María Panero 

ERA outono. um outono carnal. quase carnavalesco. no hospício ouviam-se os loucos. gritavam. babavam-se. povoavam o jardim abandonado. davam saltos. peidavam-se. mijavam contra as árvores. falavam uma linguagem estranha. falavam com o sol. falavam. falavam com a lua. com os pássaros. falavam. alguém dizia:

“ esta é uma linguagem pura. a primeira linguagem. talvez a linguagem de deus. “

e as crianças vinham de longe, trepavam os muros, e mascaradas com máscaras antigas e trajadas de arlequim, atraiam os loucos. corriam atrás deles. jogavam à bola com eles. agarravam-se às suas pernas. abraçavam-nos. beijavam-nos ...

e, mais tarde, nos longos e obscuros corredores outonais ecoavam risos e gargalhadas, risos e gargalhadas e sonhos – como se o mundo ainda fosse uma ruína; uma ruína intacta.

 

4 

ESTOU amarrado a esta cadeira. ao centro. nesta sala vazia. sem tecto. nem chão. só me deixaram esta cadeira. de resto levaram todos os móveis. também os papéis e as canetas. tudo quanto me identificava. sim. roubaram-me a luxúria da identidade. até mesmo o grande candelabro antigo. levaram. era um candelabro belo. jubilado de eternidade. herdei-o de meus pais. amava-o tanto! por vezes admirava-o. horas a fio. extasiado, olhava-o. e sentia deus em mim e conseguia ouvir os chilreios dos pássaros através das paredes e os murmúrios das árvores dentro: nos móveis. nos armários. eram altivas. as florestas. o cântico da madeira. a magia. mas levaram tudo. até mesmo a magia. puseram tudo a nu. como se houvesse nudez. e simplificaram tudo. disseram que era preciso igualar tudo. como se existir fosse uma igualdade. afinal para quê tantas cores? disseram. sim. para quê? levaram tudo. não deixaram nada. só esta cadeira vermelha. ao centro desta sala. a que estou amarrado. roubaram- me tudo. agora, só me resta esperar... só resta esperar... e assim: fecho os olhos e espero. espero. sou uma navalha de ponta e mola fechada no colo das avós empedernidas. espero. fecho os olhos. e imagino a liberdade das grandes florestas: sonho com as janelas e com o grito das aves, poderosas, às janelas, explodindo os vidros das janelas.

 

5 

SEPARA as águas. separa-as

bem. como quem transmuda

o vinho. separa-as. nas ânforas.

e que o vinho seja o sangue

e o ouro do sangue. no pão.

para que assim se consuma

a ceia das grandes traições.

a noite dos açougues reclinada

nas sobrancelhas dos homens.

enquanto as viúvas esconjuram

os dias da ira. 

Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de  Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.

Depois de passar três anos  num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo.  Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.

Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.