LUÍS COSTA::::::::::::

PANTARREISMO

Estimadas/os poetas, abaixo seguem três exemplos de poesia pantarreiísta, termo derivado, de "panta rhei "( tudo flui , Heráclito de Éfaso ) e que é uma técnica de escrever, por mim utilizada sobretudo na construção de longos poemas.

Esta técnica caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo movimento, muitas vezes violento e alucinado, dionisíaco, onde a palavra vai criando a sua própria realidade, a palavra como realidade autónoma, acção criadora de novos sentidos e horizontes, revolta e destruidora de todas as moralidades, princípios mercantis técnicos e racionalizantes bem como teológicos de um catolicismo aberrante e usurário a que a comunicação do dia a dia se encontra submetida. Quer dizer, a linguagem do Pantarreiismo tem as suas origens na linguagem primeira, original ou primordial, fora dos princípios apolíneos, ainda não exposta aos interesses e preconceitos técnico -moralistas dos escrevinhadores e tecnocratas, podemos dizer que é uma linguagem das raízes, uma linguagem reveladora, uma linguagem que segue os princípios do movimento universal, do indizível, de um principio criador, cego, mas milagroso, sem fins racionalmente explicáveis, onde a divinização do homem, “ a coroa da criação “, não existe. Podemos também falar de uma fenomenologia do verbo ad infinitum...

Devo ainda dizer que o pantarraísmo tem, claro, diversos precursores, aproximando-se bastante do surrealismo, sobretudo, em certas imagens, todavia, ao contrário deste, não segue os princípios do " Hazard ", pois que dá grande valor ao modo de fazer (ofício), ou seja, ao corpo do poema, como construção, que é a palavra tornada forma, visível.

Contudo esta construção está assente num fundo emotivo e delirante.

O espectro do expressionismo, sobretudo, de um Gottfried Benn, de um Heym e de um Georg Trakl, encontra-se bastante presente e também não lhe são estranhas as aventuras creacionistas do grande Vicente Huidobro e não quero aqui esquecer o poderoso verbo de um Hölderlin ou o niilismo vitalista de um Nietzsche e o lado demoníaco ( estética do feio ) de um Baudelaire ou mais actualmente os delírios de um António Gamoneda ou ainda de um Leopoldo Maria Pannero.

Entre os portugueses nomeio, sobretudo, Antero, Mário de Sá-Carneiro, Luís Miguel Nava, António Maria Lisboa e em alguns casos Al Berto, Ruy Belo , Cesariny, António Ramos Rosa ou ainda Jorge Melicias e Daniel Faria .

3 POEMAS DO LIVRO AINDA INÉDITO:
GRITOGRAFIA OU ESTA PALAVRA DE SANGUE E BARRO

DO MOVIMENTO

“ Tudo flui “ Heráclito de Éfeso

Os telhados de colmo

ou uma águia de movimento planando dentro

das mãos abertas

onde as clareiras poisam pela madrugada

onde suas poderosas ferraduras

cintilam no rochedo possante

a rochedo do coração ou da vista

a ciência de onde tudo se ergue

como um fluido de louvores

como a elasticidade do arbusto

ou o formoso braço de uma mulher

equilibrando-se na maresia



Este movimento lúcido mas sincero

que os dias trazem no seu regaço

este movimento que segue o trote dos cavalos selvagens

os cavalos de olhos de água pela noite de água

os cavalos dos lagares ou o olor do vinho novo

colado às musculosas pernas dos calcadores

as suas vozes másculas na claridade do mosto

a luz vermelha que dele se liberta

evasão que corre

e se enlaça à volta do bico das aves

interminável espanto do equinócio crepuscular

rosa tenebrosa que aguardas nos portos recônditos

da interioridade menstrual

pulsar de cordas nervosas

à hora em que os astros descansam nos costados dos bois

eis o mundo atirado na torrente do desvario

nesta firmeza líquida e ondulante

uma devastaçao nas sobrancelhas nocturnas

liberdade que verga os pulsos das árvores e dá forma à pedra

e faz explodir a semente no ventre da fêmea

cascata em liberdade



eis a hora !

esta hora !



Hora

que torna o mundo mais doce e habitável

hora

onde as ferramentas descansam

lúcidas e concretas

junto ao grande tanque

hora

onde os calos se recompõem das refregas

onde se lavam os rostos queimados pelo incêndio do sol

onde os animais de carga se libertam do jugo

da dura existência

hora de doces cetins e tinturas coloridas

dos doces frutos e do pão bem amassado

da lamparina de barro

hora que as faces dos homens recebem de mãos abertas

quando as mulheres chegam

vencidas de cio

com maravilhosas travessas nos cabelos

hora ou abanão no bronze da carne

com um rio por dentro

um rio implacável ,

rubro,

alargando as margens

dando forma à terra

rio violento como o touro azul

como o touro ansioso de sangue,

sem o saber,

na alucinação da marrada



Ó hora

quero conhecer-te por dentro

como quem aprende o soletrar das letras que antes

da primeira leitura são um enigma,

uma massa negra ou um inverno tardio

onde a neve se acumula e se abate sobre as estradas

com um rumor de brancura

quero conhecer-te

sentir-te entre os dedos ávidos de suor

sentir-te na pele transpirada

do corpo perdido no interior das grandes florestas

tropicais

onde os animais surgem de repente por entre o denso

arvoredo e explodem na rezina dos frutos

onde o tigre faz estremecer o mundo

com o seu pâncreas

onde tudo é movimento



Ó movimento da luz e do mar

do plâncton

do tubarão cego à procura da sua vítima

( turbilhão do sangue )

movimento que este corpo persegue sem saber porquê nem para quê

movimento que derrubas os belos jardins

que fazes vingar enormes torres de ódio ou amor

movimento dos olhos,

movimento das ventas

movimento que me arrastas através de oásis

e desertos de estacas

movimento onde sou um barco louco

uma caldeira em ebulição

desejoso de liberdade

desejoso de paz

desejoso de uma tenda

onde finalmente pudesse descansar

curar as feridas,

os profundos lenhos da alma

as longas fissuras de pez que se vão acumulando nos ossos

dos antigos e ágeis guerreiros



Ó portentoso movimento!



Ainda que dos olhos me corra o leite mais claro

que alguma vez se possa imaginar

a tua claridade de tão clara

é uma impermeável escuridão

DO AMOR DIONISÍACO
Fonte de carne

Raízes que trespassam os corpos

A volúpia

Roendo a verdura dos intestinos



Unhas que se vergam

Sob o incêndio do sol nocturno

Os olhos são rubras cascas

De negras afirmações



Dizes: fode-me!



Debaixo do castanheiro

De Donar penetro-te

Até aos mais íntimos mistérios

Dionisíacos



E falamos coisas estranhas

Em línguas estranhas

Pois conhecemos o idioma

Das águas blasfemas



E fumegantes

Transpiramos a raiva do amor

Pelas mãos ungidas, à altura

Do tórax, em sangue

ESPELHO METAFÍSICO
O espelho

o rosto ainda derramado pela meia-noite

escorrendo pelo espelho

um parir de tijolos no corpo da música

dos Sex Pistols

um oceano que se pesa no balouço das estrelas

as faces

exaustas

o olho das mãos

talhado na porcelana de antigos cânticos

estas mãos assomando à tona da água pelo ventre

das mães

estas mãos trementes de azeites obscuros

estas mãos que abrem portas estranhas

para fora e para dentro do tempo

no fogo

vagas rutilantes

ou abstracções

sombras que amanhecem na crusta da maquilhagem

a explosão da cocaína

enrubescendo os músculos quebrados

na secção de cada nervo



Abres a janela

o azul do grito na boca que te dilacera os pulmões ,

tufões de escárnio no cérebro

os castanheiros numa linha de pensamentos obscuros

clareiras

lagos

caminhos

atalhos

vertigens

becos

ecos

mulheres que te inspiram sonhos antigos

mulheres de sedas propícias

que trazem reinos minerais na âncora das coxas

o mel saindo-lhe dos dedos

o mel que tu ambicionas

ou as sementeiras

mós

amoladores

furadores

buris

forjas

rendas

teares

podadeiras

enxadas

enxames

e o pulso das oliveiras

movimentando as fabulosas noras

e um cesto de vime

junto ao canavial

ali onde outrora era o centro do mundo

ali onde outrora era o centro do teu amanhecer

depois dos dias fartos

quando bebias a tigela do fresco leite

isto

antes de Alcácer Quibir



Olhas-te de novo no espelho,

a testa dividida pelo estigma da esfinge,

soterrado entre os dois rios

e à luz da lamparina

escreves

escreves na agitação dos ventos

nas areias dos grandes desertos

escreves

e olhas-te de novo no espelho

que uma procissão de sombras egípcias agora cruza

que te fura o rosto até ao lugar dos olhos

o teu rosto ou os ossos do tigre que se ergue nos ombros

o teu rosto ou a vida estremecendo

nas especiarias do coração

o teu rosto ou um monte de nada

à procura da agulha do astrolábio

das grandes viagens metafísicas

pelos subúrbios das cidades

onde as crianças têm pregos nos olhos

e cavilhas nas pontas dos dedos

onde o céu dorme suspenso no nevoeiro das pontes humanas

por baixo das metálicas hastes do eu



Olhas-te no espelho e revês

as bétulas as giestas

os loureiros as cavernas

os desfiladeiros

cobras do tamanho das tempestades

pauis

longas lianas musgosas

enroscadas ao tronco dos cadáveres

caravelas atravessando ,

verticalmente,

o bosque das árvores de nomes desconhecidos

estacas

vómitos que tocam a raiz quadrada do inferno

um sonho pneumático

a inseminação primitiva

( o seu assassinato )

a roda a motor de alta tensão na cabeça do carneiro

a famosa hélice dos oboés

por cima dos rebanhos adormecidos

e homens cobertos de tatuagens arabescas



enquanto a ponta da lança jorra do capim

que o animal ferido transporta na sua substância negra



( entregue ao ritual da morte )



– encurralado no vazio



Luís Costa, Fritzlar 2010

Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de  Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.

Depois de passar três anos  num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo.  Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.

Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.

http://oarcoealira.blogspot.com/