GERARD CALANDRE

VESTÍGIOS

Trad. Nicolau Saião

VESTÍGIOS - INDEX
MATUTINA

Os pequenos finórios da Rua São Bento

nunca souberam nada de Montaigne

Nunca tiveram a mais pequena ideia

sobre o seu famoso baile campestre

onde ele esquecia a trepidação do cavalo

nas suas viagens com mão de cavalheiro

batido em assuntos de equitação.

Mascam confortavelmente

caminham cuidadosamente pelo pó da estrada

viram lá no alto e em segunda

descem até à praia Vêem os primeiros alicerces

 

No diagnóstico do velho sacripanta

há coisas murmurantes Velhos temas de gastronomia

Ele mandava escrever nas traves do tecto

frases de apoio Conceitos perpendiculares

Os pequenos finórios da Rua São Bento

entesam-se bruscamente riem alto

jamais conhecerão o rio Solimões A noite à bolina

Assim, dois minutos depois, voltei ao Clube

Engorlipo um “cassis” Faço das fraquezas forças

e sinto um dedo ossudo a roçar-me as costelas

“Miguel!” – digo entredentes Porque ele seguia

a tradição paterna

Médicos atribuíam o fenómeno a alguma paixão secreta

“Miguel!” digo em voz quente Ele era estruturalmente um epicurista

Incomodei-o tantas vezes mesmo já perto do sono

 

Aspecto e frequência das micções: a chama rebrilha

ao sopro do tempo – cheiro, temperatura, gases, depósitos

quanto aos outros excreta nem vale a pena falar

O vinho é leve, o clima pouco caprichoso

Amboise é uma das primeiras cidades a evocar fantasmas

Nas montanhas não há crimes, dizem eles com unção

Ele iia procurar essa mentira

a de Paestum, a de Touraine ao anoitecer

a do deus de Webster em Indian Head

por nossa misericordiosa intenção A volta ao mundo

em sete vozes sete melancolias

coisas capazes de se revelarem em alturas bruscas

E isto não é não me dirão dialéctica da mais pura?

A temperatura da sua alma reerguia o corpo caído

 

A esses que estando a banhos mantêm as suas crenças

o que daremos senão sombras de faunos

A nossa morte separada dos outros por pequenas barras

Vou cantarolando com os joviais companheiros de apetite

pequenas barras onde as crianças põem as mãos

antes de mergulharem O sol entusiasta

Nunca estive fora do mundo senão hoje

 

Meio filósofo meio moralista Os finórios da Rua São Bento

que não perderam o braço direito em Shiloh

Seremos acordes que se prolongam na eternidade?

 

Anteriores aos mares cobrimos talvez os desertos da Terra.

Gérard Calandre nasceu em 1952, na Bretanha, França. Viveu na Itália, leccionando na cidade de Messina. De formação científica, tem-se mantido afastado do mundo das Letras. Autor do livro Vestígios, traduzido por Nicolau Saião e de textos esparsos sobre o seu ramo profissional. Visitou Portugal em 1992 e 1997. Após o falecimento de sua mulher foi viver para o Canadá francófono.

Tem colaboração nas revistas “Diversos” – dir. José Carlos Marques, “Bicicleta” – orientada por Manuel Almeida e Sousa, “Agulha”(Brasil) – dir. Cláudio Willer & Floriano Martins, etc..

NS