Cristovam Pavia

Quatro poemas de Cristovam Pavia

SOBRE CRISTOVAM PAVIA

   Fez no fim do ano transacto 40 anos que o Poeta faleceu. Recordado foi-o por alguns, os que sem dúvida amam a sua poesia luminosa e perturbadora na sua quase ática simplicidade tão cheia de uma vivíssima interpelação ao mundo, às coisas, aos pequenos fragmentos de uma existência cifrada em amarguras e ocasionais alegrias de alguém que, tal como seu Pai Francisco Bugalho, não viveu tudo quanto quis ou quanto merecia.

  Mas, no geral do que se convencionou chamar mundo das letras, não houve – porque não podia haver num areópago de escada-abaixo como é o que nos rodeia – conveniente celebração. O que é compreensível, pois os Poetas também vêem medida a sua grandeza, frequentemente, menos pelo ruído que pelo silêncio e a sua melhor honra está precisamente nisso. O mesmo se fez, em diferentes lugares, com Bruno Schulz, com Hans Carossa, com Nuno Guimarães, uma vez que as mundanidades literatas se dão mal e ainda bem com os que só têm de seu o alto talento tão alheio a notoriedades de baixo calibre festejadas pela pedantice literata de determinados milieus societários.

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  Dizia o célebre inquisidor-mor de Richelieu, com um cinismo não isento de senso de humor, “Dai-me uma frase qualquer e conseguirei que ela ponha um baraço ao pescoço do seu autor”. E embora se trate aqui de poesia e de um poeta, talvez faça sentido suspender a respiração por uns segundos.

  Porque, com efeito, a poesia é um perigoso ofício. E se não pelas partes de fora, pelo menos pelas partes de dentro.

  Será verdade que os poetas são sobreviventes? Talvez sejam -  sobreviventes do tal lugar onde se acoita a verdadeira vida a que aludia, entre outros, o sobrevivente de Charleville (Rimbaud). A poesia será também, assim, uma certa arte das retiradas,  a forma mais pessoal de combater a adversidade.  Quem diz pessoal diz eficaz. Eficaz, na verdade, porque nisto de coisas de dentro temos de nos haver com presenças muito mais perigosas que os habituais fantasmas do quotidiano. Daí que, por vezes, como (não) queria Cristovam Pavia, só possa haver “saída pelo fundo”. Pelo fundo, pelo meio, por cima, em suma e afinal: pelo lugar onde, no encalço de Flamel, “os touros encantados que deitam fumo e fogo pelas narinas” encontram finalmente a brancura da verdade perseguida.

  De Cristovam sei muito pouco. Quer dizer, talvez saiba alguma coisa ou relativamente muito – porque vou a ele inteiramente pelo coração. Como fascinado leitor, primeiro, de uns raros poemas inseridos numa pequena antologia algo precária e, depois, dum livro muito pundonorosamente feito, com os seus poemas completos - publicados, esparsos e inéditos – que li inteirinho num pedaço de tarde de verão, sentado sob uma das nogueiras citadinas em frente do edifício barroco do antigo Hospital da Misericórdia portalegrense.

  Cristovam falava (fala) de pequenas coisas, o que é indício de que o fazia de grandes coisas: da morte do seu cão, da luz difusa batendo na parede da casa da velha quinta alentejana dos ancestros, da recordação que sua mãe teria na noite do seu hipotético e afinal sucedido funeral. Coisas assim leves para quem julga que o poeta é uma espécie de artilharia pesada.

  E porque o tom em que o fazia é dos mais belos (e estou a lembrar-me da emoção em Rilke, em Hesse, mas também em Marie-Noel), há-de encontrar sempre quem através dele possa olhar as tardes de negrume e, simultaneamente, de inteira claridade onde se vão reflectindo ora um rosto, ora um ombro, ora uma mão escapando ao nevoeiro...

Cristovam Pavia, de seu nome civil Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, nasceu a 7 de Outubro de 1933 em Lisboa, vindo a falecer sob o rodado dum comboio, na mesma cidade, em 13 de Outubro de 68.

  Seu pai era o presencista Francisco Bugalho, oriundo de Castelo de Vide e ali residente.

  A partir de 1940, o poeta morou em Lisboa, ali finalizando os estudos liceais.

 Frequentou a Faculdade de Direito de Lisboa, que abandonou para ingressar na Faculdade de Letras. Entre 1960 e a sua morte trabalhou na construção civil e viveu entre Lisboa, Castelo de Vide, Paris e Heidelberg, tendo nesta última recebido acompanhamento psicoterapêutico. Deu a lume, em 1959, “35 Poemas”, a sua única obra poética publicada em vida. Anteriormente tinha publicado colaboração poética em jornais e revistas, como Diário Popular, Árvore, Anteu, Távola Redonda, Serões. Usou, além de Cristovam Pavia,  os pseudónimos, ou "semi-heterónimos", Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo Menezes da Cunha Ferreira.

  "A poesia de Cristovam Pavia é a revelação de si próprio, de uma personalidade em conflito com o mundo em que vive e que procura uma fuga pela recuperação da infância morta, pela aceitação do seu conhecer-se diferente e despojado do que lhe é mais caro (a infância, o amor, o espaço e o tempo em que ambos se situavam), a transformação do seu próprio ser pelo sofrimento, num movimento de ascese e de autodestruição, quando o poeta atinge a consciência de si próprio e da sua voz.", diria José Bento em "Sobre a Poesia de Cristovam Pavia", in Poesia de Cristovam Pavia, Lisboa, 1982, p.15).