CAMILA VARDARAC

ANTOLOGIA - INDEX

Lado B

O corredor parece interminável, como o corredor de uma imensa biblioteca fantasma, onde as estantes são celas empoeiradas e os livros são pessoas cujas histórias foram apagadas pelas circunstâncias inevitáveis da imposição.

No início do corredor, o carcereiro. Na sua ficha de trabalho consta:
cor branca - palidez opcional
peso estável na magreza - por parte de mãe
calvície acentuada - por parte de pai
estatura mediana - por parte de ambos
olhos fundos - por parte da insônia fiel que o acompanha desde a infância
uniforme preto - 40
sapato preto - 42
as luvas escuras de couro sintético seguram os pulsos algemados do rapaz.

Na sua ficha de prisão consta:
cor: branca
cabelos: muitos e ainda castanhos
estatura: alta - por parte de pai e mãe
olhos: azuis - anil
sexo: masculino - até segunda ordem
uniforme: cinza chumbo
boca: grande que exclama

- Eu juro que não estava sonhando, isso é um engano!

- Rapaz, mantenha os olhos abertos e a boca fechada.

- Me solta, eu sou inocente!

- Rapaz, deixe-me explicar (com a voz serena que nunca muda de tom) no castelo das ilusões, cercado por felicidades floridas, cortado por rios de redenção 24h - purifique aqui a sua alma - todo mundo é inocente... mas nesse lugar a coisa é diferente, aqui o mau cheiro da culpa aumenta na mesma medida que o desespero, enquanto as horas são minutadas na cabeça, enquanto as mãos trêmulas rabiscam os dias nas paredes da memória, até que não existam mais paredes, nem memória, nem força que sustente o corpo que vai sumindo dentro desse uniforme, olhe para mim, garoto!

- Eu não quero, eu não...

Enquanto uma das mãos segura os pulsos a outra vira o rosto do garoto para si.

- Você tem olhos bonitos, menino (olhos nos olhos do detento)
você tem lábios bonitos, menino (dedos nos lábios do detento)
e é por isso que eu vou te avisar para segurar o grito, grite somente quando sentir que esse som emitido para dentro está corroendo as suas vísceras, porque esse corredor não é o começo do fim, como todos pensam.

O começo do fim é o berro, eles escutam, rapaz. Você sabe quem são eles? (sussurra no ouvido do garoto) são cardeais bem alimentados, com ouvidos atentos grudados atrás da porta, esperando ansiosamente pelos pedidos de socorro... e aí, eles cruzam essa passarela com a postura dos anjos, mas por baixo dos hábitos fervem cães sedentos. Te levam para dentro do santuário, onde se inicia o ritual orgiástico da fé, tiram suas roupas para melhor exorcizarem seus desejos, salivam com as bocas abertas entre uma profecia e uma chupada até que você caia de joelhos e o brilho dos seus belos olhos escorra pelo chão formando um mar de lágrimas azuis, no qual eles banham seus corpos suados depois do trabalho.

O carcereiro tira as algemas, abre a cela, empurra o rapaz para dentro e passa a chave no cadeado para trancá-lo.

- Sabe, garoto... Proudhon dizia que a propriedade é um roubo, aqui a propriedade (ele aponta para o rapaz) é uma dádiva muito esperada.

Com essas palavras, ele desvia os olhos do menino e faz o mesmo caminho de volta, rastejando como soldado no front.

Camila Vardarac nasceu no Rio de Janeiro, em 1987. Observadora por natureza, escritora por impulsão – pela necessidade (recorrente) de expressar-se em prosa e poesia. Voyeur da realidade e de suas representações, encontrou no cinema um meio de materializar suas idéias no continuum do espaço-tempo, desconstruindo-se em impressões.