::::::::::::::::::::::::::::::::::::::Al Berto:::::::
Poemário
16 de Janeiro (1985)

em tempos li muitos livros, hoje raramente leio. os livros cansaram-me, devoraram-me a pouco e pouco o prazer de ler.

o vento da noite traz imagens: um rapaz em calcário deitado no dorso dum cavalo azul perfura a claridade do mar. abro a janela do sonho, aceno-lhe, mas ele não me pode ver.

uma ave de palavras escreve no espaço a remota sabedoria do voo, depois desce e vem pousar suavemente na palma da mão. olho-a mas não ouso tocar-lhe.

acordo quando a ave e o rapaz se deitaram sobre a pele. abro os olhos e estendo a mão e o corpo para fora do sono, ergo-me por dentro do imenso vazio.

tudo se despedaçou. o sonho , e o amor que é sempre tão breve. o mundo dorme sob o vento. só eu continuo acordado, em vigília. se houvesse agora uma catástrofe eu daria por ela. levantar-me-ia daqui para encarar a morte, dizer-lhe que são inutilidades o que arrasta consigo.

estou gasto. dei-me sempre mais do que podia. não há nada que me possam roubar, sou um homem espoliado de todos os bens, de todas as doenças, de todas as emoções. sou um corpo pronto para a viagem sem regresso, para o crime e para a morte. sou um corpo que se evita, um homem cujo nome se perdeu e cuja biografia possível está no pouco que escreveu. sou um corpo sem nacionalidade, pertenço às profundidades dos oceanos, ao voo da ave migrante. sou um alfabeto e não sei se terei tempo para me decifrar.

lá fora anoiteceu.

são raras as claridades que do meu sangue sobem ao rosto. há um lume invisível no teu olhar, uma visão que o espelho me revela: cintilam cristais enquanto dormes, uma árvore cresce nos pulmões. assim construo as paisagens, assim te ofereço a morada de sossego e de prazer. mas tu não vens, porque me és exterior. posso criar o universo inteiro a partir das minhas células, só não posso criar-te a ti, corpo que morre na falsa juventude dos espelhos...

... a paixão revelou-se-me no instante em que percebi que sabia quase tudo da vida, mas já não foi possível perder-me na tentação do suicídio. nunca amei e nunca fui amado: ignoro se isto é verdade, o mais provável é ter inventado, um dia, esta mentira, unicamente para me salvar.

que horas serão para lá deste século?

onde estaremos neste momento?

estarei eu em ti ou serás tu que me devoras e me comoves?

... teu nome, pronuncia teu nome para que seja impossivel esquecer-me do meu. diz-me o teu nome de ontem, quando éramos o reflexo exacto um do outro. toca-me o rosto com o teu nome, ou pousa-o sobre as mãos; debruça-te para dentro de mim e deixa que o segredo do tempo fulmine os ossos.

In: O Medo

Poeta português, natural de Sines. Al Berto (Alberto Raposo Pidwell Tavares - Coimbra, 11 de Janeiro de 1948 — Lisboa, 13 de Junho de 1997), frequentou diversos cursos de artes plásticas, em Portugal e em Bruxelas, onde se exilou em 1967. A partir de 1971 dedicou-se exclusivamente à literatura. Estreou-se com o título À Procura do Vento no Jardim de Agosto (1977). A sua poesia retomou, de algum modo, a herança surrealista, fundindo o real e o imaginário. Está presente, frequentemente, uma particular atenção ao quotidiano como lugar de objectos e de pessoas, de passagem e de permanência, de ligação entre um tempo histórico e um tempo individual. Por vezes, os seus textos apresentam um carácter fragmentário, numa ambiguidade entre a poesia e a prosa (Lunário, 1988; e O Anjo Mudo, 1993).

A sua obra poética engloba Trabalhos do Olhar (1982), Salsugem (1984), O Medo/Trabalho Poético, 1976-1986 (prémio de poesia de 1987 do Pen Club), O Livro dos Regressos (1989), A Secreta Vida das Imagens (1991), Luminoso Afogado (1995) e Horto de Incêndio (1997). Deixou incompletos textos para uma ópera, para um livro de fotografia sobre Portugal e uma «falsa autobiografia», como o próprio autor a intitulava

In: http://www.astormentas.com/din/biografia.asp?autor=Al+Berto