PAULO MENDES PINTO - UNIÃO EUROPEIA/TURQUIA

O regresso da noção de cristandade?
Queiramos ou não, gostemos ou não, todas as nações apresentam na sua estrutura identitária dados vindos do mundo religioso. Portugal é um país de base cultural católica. Sejamos, de facto, católicos, ou então evangélicos, protestantes, budistas, judeus, ateus ou laicos, etc, não nos podemos esquecer que a nossa cultura nasceu e se desenvolver num contexto que privilegiou secularmente um credo; só em 1974 o catolicismo deixou de ter lugar consignado na Constituição; só em 2001 foi votada uma Lei de Liberdade Religiosa - é significativo.

Desse factor somos inconscientemente herdeiros de um passado irrevogável, e através dele nos apresentamos profundamente marcados na nossa forma de estar e de viver o mundo e os seus problemas.

Não está certo nem está errado: é um facto histórico com o qual temos de conviver e que devemos ter presente sempre que pensamos em cultura em Portugal. Dependente de Roma e do catolicismo, ou afirmando-se a ela irreverente e tomando formas de recusa, toda a nossa cultura não passa ao lado desse realidade: a base católica do país.

Toda a Europa comunga da mesma noção identitária, mais ou menos enraizada nas suas gentes e nos seus hábitos.

Durante longos séculos, no Ocidente medieval, mais que reinos, principados e condados, havia a grande mole que identificava o todo colectivo, a «cristandade». De facto, a génese da cultura ocidental está profundamente ligada à noção de organização do mundo que tem em dados imaginários e simbólicos os principais referentes da construção geográfica.

Mais que identidades políticas autónomas, a cultura medieval, onde Portugal logicamente se inclui, tinha como fundamentais referentes do espaço categorias simbólicas e espirituais. O horizonte geográfico era um horizonte espiritual. A Europa, os Estados-nação, construíram-se mediante uma identidade que era, essencialmente, religioso-simbólica: a ideia de cristandade que afirmava face aos que o não eram.

A recente polémica em volta do início das negociações para a entrada da Turquia na União Europeia trouxe novamente esta identidade ancestral da Europa ao de cima.

Porque é que a Turquia, segundo Valery Giscard d'Estaing não pode entrar para a EU? Está fora da Europa? Será por isso?

Pode ser, levado em sentido estrito, de facto, grande parte do território da Turquia não se encontra no continente europeu, o mesmo se passando com a sua população. É um argumento que pode parecer lógico mas que não satisfaz. A delimitação entre Ásia e Europa é significativamente artificial; basta ver que a Rússia engloba há séculos territórios de ambos os lados e em nada isso fez perigar a sua unidade; são as escassas centenas de metros de mar que dividem ao meio a antiga Constantinopla que marcam uma radical diferença entre povos?

Ora, o que se passa é que a Turquia será o primeiro pais da União Europeia a não ter como base religiosa o cristianismo numa das suas versões históricas: catolicismo, ortodoxismo ou protestantismo.

Durante séculos o Ocidente europeu fez cruzadas para afastar o muçulmano da Terra Santa; durante séculos os Papas exararam bulas a exortar à guerra contra o "infiel", e os reis da cristandade responderam a essas bulas com sangrentas conquistas.

Durante séculos o muçulmano foi, de facto, o grande "papão" da Europa. Temos um grande preconceito, que vem do século VII da nossa era em relação ao Islão.

Foi com esse preconceito, com essa visão negativa do "outro" que construímos a nossa identidade. É nos impossível ultrapassar essa herança de forma fácil. Pode a Turquia entrar para o clube das nações da Europa?

Pode a Turquia juntar-se ao grupo de países que durante séculos viram o seu espaço e a sua religião como a principal marca do demónio no mundo dos homens?

Que sabemos nós sobre a cultura turca? Sobre o Império Otomano que normalmente é totalmente esquecido nas nossas disciplinas de História?

Nada. Somos, nós Europeus, totalmente desconhecedores dessa realidade culturalmente riquíssima que é a Turquia, herdeira do grande Império Otomano. Só o pré-conceito existe. Nada de conhecimento.

 

PAULO PINTO. Historiador das Religiões
(paulopinto@mailvis.fl.ul.pt)

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PORTUGAL - 2002/